orgulhosamente apresenta
**Índice de Histórias e Poemas**
O Poço
O Rubi
Sabá em Dias de Semana
O Colecionador
Noturnos
Questão de Honra
Quando a noite cai
Quando os olhos se fecham
Os corações mais negros despertam
Emergindo de longos sonhos eternos
Lutando contra labirintos internos
Sorvendo a alma dos tolos
Compondo suas próprias almas
Enriquecendo seu próprio sangue
Com a luz da Lua na face
Com uma dor profunda no peito
Correndo em busca de vida
Buscando , frenéticos , por uma saída
Gritando , enlouquecidos , por um alívio em sua sina
Quando surge o Sol em meio o horizonte ,
Aterrorizados , se escondem
Refugiam-se em seus medos
Fogem de seus sonhos
Deliciam-se com seus pesadelos
E , pacientes , esperam , novamente ,
A ascensão da deusa Ártemis.
**********
Nota: O texto em questão foi escrito pela Ana, que é a autora da Meri nas fics do Expresso Hogwarts, e dos arcos Prelúdio de Sonhos Partidos (com a Lu/Dhara) e Para Sempre na Memória.
Foi em meados de agosto que tudo ocorreu. Estava hospedado na casa de um amigo que há muito não revia. Ele me escrevera uma carta cordial e ao mesmo tempo apelativa; não suportava mais o tédio que sentia vivendo sozinho em seu Solar afastado da cidade, tédio este que nem seus estrondosos e comentados saraus das quintas-feiras conseguiam demover. Eu era sua última esperança de distração.
Como também padecia do mesmo mal de meu amigo - pois passava dias amargos em Londres, fumando muitas cigarrilhas, suspirando cavamente em longos jogos de bridge, ouvindo as mesmas conversas, os mesmos escândalos, os mesmos comentários -, acolhi com prazer seu convite. Sempre nos divertíramos juntos, quando acadêmicos; a expectativa do retorno destes ditosos dias impediu-me de recusar. Arrumei pequena mala, tomei um coche até a estação e embarquei no Expresso para o interior.
Cheguei ao Solar de Lord Cedric Hommersfield ao final da tarde, esfomeado e cansado. O caminho da estação até ali fora árduo; chacoalhei perto de hora e meia dentro da carruagem abafada, que rolava penosamente pela estradinha de chão cheia de pedras e buracos hostis. Um criado de libré encarregou-se de minha mala e de guiar-me até seu amo.
A visão do Solar encheu-me de curiosidade e de estranho respeito. Não tenho costume de impressionar-me demais com estas coisas, mas foi impossível desligar de mim a bizarra sensação de vida própria que o Solar apresentava. Lembrei-me, risonho, de certo conto de mestre Poe. “Ele deve estar se revolvendo no túmulo” - pensei - “vendo que comparo este luxuoso e recente edifício com seu venerável e bem aclimatado Solar de Usher”.
Algo, entretanto, me inquietava. A fachada de pedra escura, com janelas altas e bem guarnecidas iluminadas pela luz da lua crescente, perturbava-me. Tinha um vago pressentimento mau. O silêncio era quebrado apenas pelo som cadenciado de meus passos e os do criado. Não via o momento de adentrar a casa. Sentia-me ridículo. Um morcego passou voando rente a meu ombro. Estremeci.
Felizmente, fui retirado de meu absurdo temor pela efusiva recepção de Cedric. Esperava-me à porta do vestíbulo; abraçamo-nos fraternalmente. - Seja bem-vindo, Fidalgo londrino! - exclamou, sorridente.
- De coração agradeço, Milord do interior! - respondi, no mesmo tom.
Cedric conduziu-me, tagarelando, pelos cômodos do Solar até o quarto que me destinara. Quase não dei atenção às suas palavras; ficara extasiado com a riqueza do ambiente. Viam-se obras de arte, armas, tapetes, pratarias, todos de origem indiscutivelmente nobre e exclusiva, expostos com extremo bom gosto e inteligência. Meus aposentos eram pegados aos dele; a mobília combinava o luxo à funcionalidade, o que me fez entrever excelentes momentos naquele Solar. Tive de me controlar para não rir às gargalhadas de minha primeira impressão e de meu pressentimento. Pobre tolo, ignorava o futuro!
- Se te ainda bem conheço, o apetite de dez Gargântuas está a roer-te, não? - perguntou-me Cedric.
- Não é necessário ser Gargântua para esfomear-se em viagem de tal quilate! Maldita estradinha!
Assumindo ar profético, Cedric apontou em minha direção e disse, sério:
- Filho, é árido como urze o caminho que conduz ao Paraíso; é isso que torna tão prazerosa a chegada.
Dei uma gargalhada. Ele continuava o mesmo. Deixou-me só no quarto; notei com prazer tratar-se de uma suíte e que meu banho estava preparado. Entreguei-me a ele e, depois, deixei-me guiar pelo criado - figura sisuda e avara de palavras - até a sala de jantar, onde meu anfitrião já me aguardava, metido em um robe de chambre castanho.
Conversamos e jantamos fartamente. Nem o restaurante mais rico de Londres conseguiria oferecer jantar tão fino. Passamos, finda a refeição, para a biblioteca, onde poltronas de formas aconchegantes convidavam-nos ao repouso. Sentamo-nos e, saboreando cigarrilhas, reatamos a conversa:
- Meu caro Cedric, não me canso de admirar este teu Solar. Salomão se sentiria humilhado, aqui dentro!
- Guarda tua admiração, meu amigo; faça com que dure bom tempo. Caso contrário, se esgotará rapidamente e o luxo te enfastiará - é experiência própria. Quanto a Salomão, estou certo de que ele se riria de mim, andaria comigo de braços dados por esses ricos corredores e diríamos, em coro: “E então? Que grande maçada, einh?”
Lembrei-lhe de que seus saraus, comentados até na Capital, poderiam proporcionar tudo, menos tédio. Um leve e malicioso sorriso perpassou seus lábios e, com profundo suspiro, respondeu:
- São meus últimos esgares contra os grilhões do tédio, meu amigo. Confesso que os saraus rendem-me bons momentos de dança e colóquios, os quais certas vezes estendem-se às rendas e lençóis, mas, quando consumatum est...eis o tedium vitae!
Ficou em silêncio, mexendo nos ricos anéis que trazia em seus dedos longos e finos. Contemplei-lhe as feições; não mudara em nada: seus cabelos lisos e finos, de um louro escuro, chegavam-lhe à altura dos ombros. O rosto, de belos traços, estava um pouco mais pálido: davam-lhe vida os olhos castanho-esverdeados, grandes, amendoados, e os lábios sensuais, bem torneados, sempre prontos a entreabrirem-se em um sorriso malicioso e meio cínico
- Para teres uma idéia - continuou ele, acendendo outra cigarrilha -, tenho dado meus saraus, a cada quinta-feira, em um cômodo diferente deste Solar, a fim de escapar da rotina. Cheguei a ponto de receber no porão!
- No porão?! És louco?
- Não. Sou excêntrico. - E acrescentou, com um sorriso: - As damas gostam disto, tu o sabes. Mas, voltando ao assunto, foi um sucesso: o traje exigido era ou mitológico, ou macabro; confesso que foi a única vez em que me diverti, realmente. Fiz até descobertas!
Fiquei curioso. Cedric enumerou-me, então, os tesouros que achara entre a poeira: uma armadura completa; três vasos chineses, da dinastia Ming; um retrato de corpo inteiro de seu avô, certamente colocado no porão por seu pai, devido a inimizades; um livro antiqüíssimo, cheio de ritos mágicos, lendas e sortilégios; uma espada datada do século XIV; livros de Maçonaria; uma máscara indiana e uma estatueta de Buda, esculpida em marfim.
- Espalhei tudo pelo Solar. Se não me engano, a espada está presa à parede de teu quarto. A estatueta de Buda encontra-se em meu toucador e o livro de sortilégios, em minha cabeceira.
Pus-me a rir. Desde quando se dedicara a isto? Ele, o grande incrédulo? Era preferível que deixasse um crânio à cabeceira em memória de Yoric e do excelso William!
- Concordo - disse ele, sorrindo -; entretanto, o grande ateu, como dizes, está apenas comprovando sua opção de vida. Venha comigo; mostrar-te-ei algo, pelo menos, curioso.
Fui seguindo meu anfitrião, com ar debochado, trauteando o Te Deum. Ele deu uma risada. Em determinado momento percebi que uma candeia, na varanda, permanecia acesa e a porta, entreaberta. Censurei o descuido do criado; Cedric, contudo, negou que fosse erro do serviçal:
- Isso faz parte de minha tese... Quase a sua comprovação. - sussurrou, enigmático.
Confesso que não gostei muito daquilo. Senti que meu pressentimento pretendia voltar a angustiar-me. Ao adentrar o quarto de meu amigo, porém, não pude reprimir exclamação de assombro: ele reunia ali, naquele cômodo não muito espaçoso, objetos exóticos e provenientes de diversas partes do globo.
- Que mercado persa, não? - perguntou ele, sorridente, parado em meio aos seus tesouros, de braços abertos - Dou graças, em parte, a meu pai, viajante incansável, colecionador imbatível e milionário excêntrico, suas grandes qualidades, senão as únicas. Mas o ponto é este, meu caro: eis o Vade Mecum do Malefício! Vamos, pegue, não irá morder-te nem paralisar-te.
Ignorando o gracejo, peguei o compêndio amarelado e roído de traças que o belo Cedric me estendia sem abandonar seu sorriso cínico. Estava escrito em tipo gótico, ilustrado de forma a lembrar os antigos estudos alquímicos e o inglês era arcaico. Estimei em um montante invejável de libras o valor daquela antigüidade. Súbito, lembrei-me de perguntar ao Lord:
- Caríssimo Milord do interior, dono dos tesouros da tumba do faraó, o que tem este monte valioso de crendice e bolor com a candeia acesa na varanda?
Cedric achegou-se a mim, pôs a mão em meu ombro e murmurou, em meu ouvido, com voz rouca:
- Amigo... a candeia está acesa e a porta entreaberta a fim de receber Aquele que Virá.
Um calafrio percorreu-me a espinha. Tomado por estranha inquietação, lembrei-me de meus temores quando de minha chegada e senti-os de volta, mais intensos, contudo. Procurei segurança nos grandes olhos de Cedric, que me fitavam, jocosos. Meu susto o divertia deveras! Tentei controlar-me:
- Que coisa ridícula, Cedric! O ar do interior embota as tuas faculdades, definitivamente! Crês, então, que qualquer dia desses serás visitado por Mefistófeles, Merlin, Odin ou as Walkírias? Ou darás um sarau em sua homenagem?
- Espero que venham as Walkírias, meu caro! Neste caso teremos, então, a festa! Mas, por ora, caríssimo, de mais nada saberás. Teus cabelos estão todos de pé; amanhã, à luz do sol, com teu coração livre de qualquer palpitação excessiva e teu cérebro desanuviado, conhecerás a história toda. É tarde, repousemos. Não te direi mais nada, não insistas; não me arriscarei a ter de deixar, ao meio da madrugada, minha cama macia para dormir ao pé de ti, no divã de teu quarto, a fim de acalmar-te. Vamos, não me olhes com tanta ira; o assombro está claro em teu rosto! Isso me lembra nossos serões no tempo em que éramos acadêmicos... Ainda não te livraste de teus pavores? Não fica bem para um homem de tua idade e posição temer escritos de mau-gosto em inglês medievo...
Olhei-o com seriedade. Ele acompanhou-me até meu quarto, sempre sorrindo, e, olhando-me nos olhos, disse:
- Qualquer coisa, é só chamar. Bons sonhos. E não te preocupes: Aquele que Virá não chegará esta noite; mandou avisar antes.
Mal humorado, despi-me e aconcheguei-me nos lençóis de linho. Enquanto não conciliava o sono, pensava naquele comportamento absurdo de Cedric e, de tanto conjeturar, acabei por considerar tudo como uma enorme criancice. Adormeci logo depois, mas meu inconsciente, excitado, incluía em meus sonhos figuras bizarras de viajantes macabros que eu teria tomado como avisos se fosse menos leviano.
No dia seguinte, logo pela manhã, fui desperto pelo mesmo criado metido em sua impecável libré escarlate. Após o desjejum, comunicou-me que Milord me esperava no jardim. Vesti-me e dirigi-me para lá. A manhã estava agradável, o céu azul com poucas nuvens; uma brisa suave balançava os ramos do extenso e bem cuidado jardim. Parabenizei, intimamente, o encarregado daquelas flores maravilhosas.
Encontrei meu amigo sentado sob o caramanchão, em confortável cadeira, de costas para o caminho de grama baixa cercado por pedras regulares, arredondadas, pintadas de branco, que ia da varanda até ali. Vestia um terno claro, tinha uma cigarrilha na mão. Ao seu lado, em delicada mesinha, um cálice de xerez pela metade e um exemplar do Times, intacto. Movi-me silenciosamente a fim de surpreendê-lo; ele, porém, pressentiu minha chegada e virou-se bruscamente. Meu coração quase parou quando avistei as feições horrendas que marcavam o rosto de Cedric! Minhas mãos tremiam convulsivamente e palidez mortal desfigurou meu rosto. Por entre meu terror, contudo, pude perceber a diversão de Cedric, que ria a valer, reclinado na cadeira, com os braços pendentes; tinha em uma das mãos a tal máscara indiana que achara no porão.
- Muito engraçado, Milord! Mais outra destas e vou-me, com amizade ou não, deixando que te afogues de vez em teu tedium vitae! Não ficarei aqui para que te divirtas às minhas custas! - exclamei, irado.
- Sinto muito, meu amigo, mas não pude resistir... Vamos, toma este gole de xerez, estás pálido como a morte... isso! Mas, hás de convir comigo que este pedacinho da Índia é bem convincente, não?
- É horroroso! Para que serve este traste?
- Calma, homem! Muitos matariam por isto que chamas tão levianamente de traste. É utilizada no ritual da deusa Kali e também serve como máscara mortuária, para afastar maus espíritos. E é gordo investimento, meu poeta; vale libras e libras... Outra valiosa contribuição do senhor meu pai para o fausto de seu querido filho.
Após o benefício do xerez, considerei o objeto com maior atenção. Horrendo, concluí.
- Bem, não é de fato um Murilo, mas... tem seu valor - acrescentou Cedric, sorrindo. Todavia, não foi para discutirmos arte indiana que te chamei aqui, e sim por causa... Daquele que virá.
Dirigi meu olhar, involuntariamente, à varanda. A porta ainda estava aberta. Cedric olhava-me, divertido.
- Espero que à luz do dia tudo seja menos perigoso para ti, meu caro - disse. Mas, não nos demoremos mais: vamos ao caso. Contar-te-ei em resumo a lenda deste viajante, escrita aqui no livro, já que a linguagem é por demais rebuscada e acabarias por dormir. É assim: há um indivíduo, um viajante misterioso, sem nome e sem procedência, que vaga pelo mundo a esmo. Pode estar hoje aqui, amanhã no Congo; depende do que lhe traz o passar dos dias. Aguarda sempre que lhe dêem hospitalidade, a qual deve se manifestar da forma que viste, e somente assim: porta aberta e, à noite, candeia que lhe ilumine o caminho. Para um personagem lendário, entretanto, acredito-o muito fidalgo, não?
- Prossiga, Cedric, estou curioso! - repliquei.
-Tanto melhor! Temi que estivesses assustado. Como te dizia, nosso amigo nômade vaga a esmo, à espera de alguém que o hospede, mas possui objetivo singular para tal agir: ele é, também, o Colecionador.
- Ora, essa é incrível! O Colecionador? E qual é o ramo de seu hobby? Objetos que recolhe das residências de seus anfitriões?
- Este é o ponto chave, meu amigo: a lenda não especifica o que o personagem, sempre designado como o “Viajante”, coleciona. Diz apenas, em tom respeitosamente mórbido - como lhe convém, aliás -, que o preço a pagar por aquele que der guarida ao Viajante será a danação, o anátema: “O néscio incrédulo que concorrer para o aumento do acervo maldito do Colecionador trará a si mesmo a desgraça e a perdição eternas”. E acrescenta, inexorável: “Uma vez atravessando os umbrais de uma residência, não a deixará o Viajante enquanto não obtiver o que deseja, e tão somente o que deseja”. E, encerrando, aconselha: “Nunca deixeis abertos os pórticos de vosso lar, pois Aquele que Virá atravessa-los-á e, com ele, a desgraça, a qual se espalhará como a peste”.
Não pude reprimir sentimento de repulsa:
- Que coisa abominável, Cedric! Como podes te divertir com tal aberração?
- Em verdade, não é a lenda em si que me diverte, mas o crédito que a ela conferem. No dia em que tomei conhecimento de nosso douto Viajante, deixei a porta da varanda aberta. Alfred fechou-a, contrariado, sem me pedir permissão. Tornei a abri-la; ele, então, aproximou-se de mim, dizendo em termos respeitosos que eu não poderia agir desta maneira, visto que esta atitude atrairia o Viajante, Aquele que virá, o Colecionador. Inquiri-o a respeito, e ele me repetiu a lenda que eu acabara de ler, assegurando-me da importância de respeitá-la e de sua veracidade. Perdoe-me, meu caro, mas ri-lhe nas barbas, como acabei de fazer contigo. Alfred, muito sério, disse apenas que pediria a Deus que protegesse seu Milord incrédulo dos perigos Daquele que Virá. Desde então tenho pesquisado pelas redondezas a respeito de nosso nômade; houve uma mulher que nem sequer esperou-me terminar de falar-lhe: mal ouviu a expressão “O Viajante”, apressou um sinal-da-cruz e bateu-me com a porta no rosto. Se meu fiel e velho Alfred tem estado sisudo e avaro de palavras como disseste, é por esse motivo. E pela diversão sem fim que retiro de toda essa história.
- E confirmaram algum caso deste...Viajante? - perguntei, retomando meu pressentimento. Aquela lenda afirmada e confirmada por tantos acabou por preocupar-me. Lembrei-me de caso parecido que minha ama contava, quando era pequeno e me recusava a entrar em casa à hora de dormir. Aquilo sempre mexera com meu íntimo e sentia, angustiado, as mãos do presente remexendo as teias e o pó de meus jazigos do passado. Cedric olhava-me, sem me compreender:
- Oh, não. Oh, não! Até tu, Brutus? Não diga que estás crendo em toda esta tolice? Confesso que te atribuía outra personalidade! Acreditas mesmo que tolas histórias de pés de lareira podem vir a acontecer? Pensas que amanhã ou depois aparecerá alguém por aquela porta, tencionando levar meu coração ainda quente em um pote de cobre ou tomar meu sangue em meus cálices de xerez? Isso é ridículo!
- Ridículo ou não, perturba-me. E, desde que aqui cheguei, senti - não ria, falo sério - que algo não estava bem; tive um pressentimento mau e achei a atmosfera pesada. E tu não podes negar que existem forças no mundo que desconhecemos; e não falo de Deus. Já tivemos discussões suficientes a Seu respeito, quando acadêmicos. Refiro-me a predisposições de espírito, da força do pensamento; do poder de uma evocação feita com fé, de uma oração recitada veementemente. Tu hás de convir que há fenômenos inexplicáveis cientificamente ocorrendo pelo Universo e que não podem merecer teu cinismo de homem rico e letrado, Cedric!
Calei-me, exausto. Lord Hommersfield nem sequer se alterara. Seu rosto continuava sereno, seus lábios entreabriram-se em um sorriso no mínimo debochado e seus olhos pousavam sobre mim de forma complacente, enquanto brincava com seus anéis. Depois, com um suspiro, acendeu uma cigarrilha e respondeu-me:
- Caríssimo e estimado Fidalgo londrino, apenas admito um tipo de fenômeno inexplicável existente no Universo: o amor. Fora ele, todo tipo de crendice ou sortilégio, reza ou predição que se me apresentarem só receberão meu notório desdém. Isso prova a natureza frágil do homem: ele precisa sempre de se sentir protegido. Assim sendo, cria para si alguma fantasia inverossímil, inexplicável. A sensação do sinistro traz em si o respeito; crie um ser misterioso, dê-lhe poderes e eis aí um novo deus. Qualquer um pode criar Deus ou Diabo próprios: basta ter imaginação e originalidade. Poderemos sair pelo mundo narrando histórias macabras e absolutamente estúpidas encerrando personagens curiosos e cheios de aura sinistra e necessária, tão concretos quanto a fumaça de minha cigarrilha; entretanto, um dia alguém de espírito fraco - ou, quem sabe, de excelente bom humor - espalhará pela Terra nossas histórias feiosas e presto! - temo-las fortes e eternas como um jatobá. E pessoas morrendo para provar que são reais. A história deste Viajante, deste imbecil que virá, não passa de uma semente muito bem plantada em terreno extremamente fértil. A prova cabal que posso oferecer-te a respeito é o fato de a porta desta varanda estar aberta há sete meses e o único viajante que por ela adentrou, além de ti, foi Lady Clayborough, aproveitando-se da ausência de seu digníssimo esposo. Se o Viajante, se Aquele que Virá, for um indivíduo de fino espírito ou uma mulher bonita, pois que venha! Que seja até Mefisto, contanto que me divirta! - acrescentou, risonho.
- Não sei, não sei... - murmurei. Não me agradei disto. Entretanto, se já decorreu tanto tempo e nada...
- Pois é isto, meu caro, é uma afronta! - exclamou Cedric, irônico - Um Colecionador recusar-se a visitar um indivíduo que tem espalhados por seu Solar verdadeiros tesouros! É imperdoável! Há pessoas de tão pouca inteligência...
- Dar-lhe-ia de graça esta máscara indiana! - exclamei, mais à vontade. O dia em que isto for um tesouro, serei o Príncipe de Gales!
- Fico feliz em saber que estás mais calmo.
- Talvez. Pretendo apenas tentar esquecer meus pressentimentos. - Isso é fácil. Quando vires a mesa que se prepara para nosso almoço, não terás em ti espaço para...Aquele que Virá!
- Pare, Cedric, eu lhe peço. Respeite minhas convicções!
- Ouço e obedeço, Fidalgo.
Curvou-se como um mouro. Nesse instante, o sério Alfred chamou-nos para a refeição. De braço dado com o Lord, segui conversando pelos corredores do Solar. Meu coração, entretanto, permanecia inquieto.
Semanas se passaram. Minha inquietação quase desapareceu e teria findado se não houvesse o espectro da porta aberta na varanda e da candeia que brilhava, impassível, noites a fio. Cedric adentrou de tal maneira a brincadeira a ponto de ordenar a Alfred que pendurasse outra candeia no portão de entrada do Solar, a fim de que, segundo suas palavras, “o pobre Viajante, coitado, desconhecedor do caminho, não tropece ou se perca nos jardins”. Por entre nossas cavalgadas, saraus, leituras, audições - Cedric era um virtuose do violino -, jogos de bridge ou cricket, o Lord sempre fazia menção ao Colecionador, rindo-se abertamente de minha apreensão.
Certa noite, uma ventania tenebrosa trouxe consigo uma forte tempestade. A chuva caía em torrentes, o vento assobiava nos caixilhos das janelas, relâmpagos rasgavam o céu carregado de nuvens. Confortavelmente recostados em nossas poltronas, na biblioteca, observávamos a intempérie. Cedric remexia seus anéis, como seu costume; um seu bocejo longo quebrava o silêncio, de vez em quando. Eu, entretanto, me deixava levar pelo espetáculo, sentia-me um primitivo, minha alma agitava-se deliciosamente a cada descarga elétrica. Tinha ímpetos de curvar-me ao som dos trovões, de dançar num ritual louco e solene em honra à grande Gaia. Meu Lord observava-me como um tutor estóico observaria seu pupilo poeta. Levantei-me da poltrona, excitado, e aproximei-me da janela, a fim de integrar-me ao ambiente; relanceei um olhar à varanda. Recuei, porém, com um grito, cheio de involuntário terror. Cedric ergueu-se de um salto e susteve-me nos braços:
- Com mil demônios! - exclamou - O que tens, homem? Fala!
Não conseguia falar. Tremia, suava frio. Arquejante, tartamudeei:
- Eu... eu vi... eu o vi... ele... ele...
- Ele quem, homem?
- Não sei... alguém... alguém de capuz... pegou a candeia... na varanda... - e, virando-me para Cedric, exclamei, cravando meus dedos em seus ombros:
- É ele! É o Viajante! É o que virá! É a desgraça! A peste! Deus nos ajude!
- Que Viajante? Que tolice! É Alfred!
- Alfred não passearia por aí de capuz nesta tempestade e nem seria capaz de desobedecer-te! - exclamei, desvairado - É aquele de quem duvidaste!!! Ele veio!
Cedric esboçou uma resposta, mas foi interrompido por sons de passos, calmos e largos, vindos do corredor. Encostei-me à parede, aterrado. Meu amigo ficou parado no meio do cômodo, braços cruzados; disse-me:
- Com que então é o Viajante, einh? Pois recebamo-lo como cavalheiros que somos.
Mal terminou de dizer tais palavras, o desconhecido cruzou os umbrais da biblioteca. Confesso que certo alívio encheu-me o peito quando o vi, já que não se parecia com as figuras horrendas que povoavam meus pesadelos. Era um homem cuja idade estimável seria entre trinta e cinco e quarenta anos; estatura mediana. Muito magro, trajava negro, mas não se podia entrever o corte de suas roupas, pois permanecia obstinadamente envolto em manto um pouco gasto, também negro. Trazia uma bengala tosca e escura, além de um alforje surrado. O capuz de seu manto não permitia que víssemos nitidamente suas feições, mas perecia esconder um rosto - perdoem-me o termo - normal. Caminhou até a grande mesa de estudos e, depois de empurrar para o lado os livros e a papelada que compreendiam meus estudos e os de Cedric, depôs ali, vagarosamente, a candeia apagada. Depois, virando-se em nossa direção, perguntou, com voz grave e pausada:
- Lord Cedric Hommersfield?
Meu amigo assentiu. O desconhecido, então, desceu lentamente o capuz que lhe ocultava o rosto e disse a meu amigo:
- Eu sou o Viajante, Aquele que um dia viria. Eis-me, pois, aqui, em atenção à sua hospitalidade, Milord.
Cedric permaneceu sereno. Respondeu, com seu habitual sorriso cínico:
- Pois que tardou! Houvesse eu sofrido algum prejuízo material por ter deixado minha porta aberta, não hesitaria em atribuir ao senhor o ressarcimento. E, conhecido o senhor como o Colecionador, estranho o fato de ter-se demorado tanto a visitar o local que lhe pareceria o Paraíso!
O desconhecido não respondeu de imediato. Fitava Cedric; seus gestos lentos e sua respiração profunda agoniavam-me. Ele disse, por fim:
- Não necessito apressar-me. O tempo, para mim, é irrelevante. Não planejo findar minha coleção tão cedo; posso dispor, para isso, digamos...da eternidade.
Fiquei gelado. Aquelas palavras deram aos meus pressentimentos antigos a força de que necessitavam. Hommersfield, entretanto, divertia-se, como de costume. Ofereceu uma das poltronas ao visitante:
- O senhor é deveras espirituoso. Gosto disso! Mas, sem cerimônia, sente-se.
O indivíduo sentou-se na poltrona bem em frente a nós. Recusou o xerez que Cedric lhe estendia, bem como as cigarrilhas. Não se recostara; permanecia com o tronco ereto, as mãos pousadas sobre o castão de sua bengala, olhar fixo em nós. Percebi, confuso, que suas roupas estavam totalmente enxutas, a despeito do temporal que se enfurecia a cada momento. Ele não trazia guarda-chuva.
- Bem, senhor, já que me concedeu a honra de ter aceitado minha hospitalidade neste meu humilde sanctum sanctorum, creio que seria interessante poder saber-lhe o nome. - disse meu amigo, remexendo displicentemente seus anéis.
- Não tenho nome - respondeu o desconhecido, frisando bem as palavras - Não tenho procedência. Sou apenas Aquele que Virá, o Viajante, o Colecionador.
A resposta perturbou-me, confesso. Tudo aquilo era muito real, muito fiel; quis crer ser algum chiste de amigos de Cedric, mas, quais, se ninguém sabia daquela história com riqueza de detalhes? Alfred nunca faria coisa deste tipo com seu senhor. E aquele indivíduo extremamente pálido, de faces encovadas, não se parecia em nada com o tipo de pessoas que formava a roda de amigos de Cedric e, muito menos, com Alfred. Tinha o aspecto selvagem, exótico, assustador por ser impenetrável: os cabelos, escuros e grossos, estavam presos, puxados para trás; os olhos, muito negros, penetrantes, eram emoldurados por espessas sobrancelhas que se encontravam; o nariz, aquilino; os lábios, de traços finos e duros. O semblante era sempre fechado, carregado; seu olhar parecia devassar-nos a alma, ler nossa mente, controlar nossas forças. Era indiferente ao cinismo de Cedric e seus olhos tinham um brilho estranho, feroz, cruel, quando se dirigiam a ele. Ignorava-me. Meu Lord, todavia, não se perturbava com nada:
- Não tem nome, einh? Pois creio que nos daremos muito bem; o senhor é um tipo excêntrico, também assim me considero. Somente espero que isto não incomode meu dileto amigo, que se obstina em calar-se - acrescentou, olhando-me.
Mal pude esboçar uma resposta. O desconhecido permanecia silente. A tempestade redobrara a sua fúria, e o silêncio reinante na biblioteca tornava-se opressor; Cedric começou a aborrecer-se. Voltou a encetar conversa:
- Senhor Colecionador, amanhã terá oportunidade de conhecer minhas preciosidades. Meu pai era dado à arte da coleção, igualmente; passou a vida acumulando dinheiro e tesouros, agradeço-o. Creio que faremos bons negócios.
- Eu faço somente bons negócios, Milord; assim o será, aqui. Milord enriquecerá minha coleção, sem dúvida...
Um sorriso mau brotou dos lábios do Viajante. Percebi que Cedric, dali em diante, poderia estar correndo sério perigo.
O relógio bateu duas horas; a tempestade amenizara. O silêncio persistia, embalado pelo leve e monótono som dos pingos de chuva batendo nos caixilhos das janelas. Meu amigo padecia de tédio e olhava-me irritado, pois eu não conseguia conversar. Um turbilhão de emoções transtornava-me, meu cérebro fervilhava. O Colecionador olhava-nos, fixamente, persistentemente.
- Bem, creio que já é um tanto tarde; recolhermo-nos seria o melhor a fazer, por ora. - sugeriu Cedric. - Senhor Viajante, mandarei meu criado preparar-lhe o quarto de hóspedes; infelizmente, não disponho de dependências próprias para colecionadores incógnitos - ironizou, sorridente.
- Se não for desagradável a Milord, preferiria permanecer na biblioteca. - retrucou o desconhecido.
Cedric sorriu e disse:
- Oh, com certeza! Esqueci-me de que trato com um excêntrico. Providenciarei, então, que se lhe arrume o divã.
- Não será preciso.
O Lord alçou a sobrancelha. Cruzando os braços, perguntou, firme: - O senhor se ri de mim, ou crê-me tolo?
O desconhecido tornou a dar o mesmo sorriso mau e, fitando meu amigo, respondeu, muito calmo:
- Esta poltrona é o quanto me basta; isto é, enquanto não fechamos nossos negócios, Milord. Em questões de conforto, sou indiferente; por outro lado, em questões de minha coleção, Milord terá a oportunidade de perceber o quanto sou... exigente. Tenham uma boa noite.
Permaneceu sentado na poltrona da mesma forma como fizera ao chegar e baixou o capuz sobre o rosto. Hommersfield não gostou da resposta. Com que então aquele imbecil surgido sabe-se de onde se arvorava a dar-lhe ordens como se Cedric fora um seu serviçal? Mas, a fim de evitar atritos desnecessários, retribuiu o boa-noite e retirou-se, acompanhado de mim. Não permitiu, entretanto, que me deitasse; puxou-me para o lado e obrigou-me a sentar no divã de meu quarto:
- Muito louvável tua atitude, meu amigo. Deu àquele imbecil condições bastantes para tratar-me como um reles criado. O que há contigo?
- Não me sinto bem, Cedric. Estou confuso e assustado. Este indivíduo me inspira temor e desconfiança. Desculpe se te enervei ou causei ridículo.
Apoiei minha cabeça entre as mãos, esgotado. Meus nervos estavam abalados; sentia-me cansado, como se houvesse trabalhado ininterruptamente em tarefa braçal. Meu amigo sentou-se a meu lado, pousou a mão em meu ombro e disse:
- Preocupas-te à toa, caríssimo. Tua confusão deriva apenas do fato de tal indivíduo ter surgido justamente quando teu cérebro agitava-se em torvelinho de emoções romanticamente primitivas. Tudo não passou de fantasia mórbida que habilmente construíste. Se houvesse lua, uma partida de bridge e cigarrilhas acesas, o homem que está na biblioteca seria para ti apenas o que é para mim: um imbecil ridículo.
- Não estou tão certo disso. Notaste como te olha sinistramente? Há algo de mau naquele sorriso, Cedric, ouça-me.
- Tolice! Mas, já que nosso amigo te incomoda desta forma, livrar-me-ei dele amanhã. Será fácil, tu o verás: dar-lhe-ei qualquer objeto menos valioso de minha coleção e ele irá embora, servil e satisfeito, certo de seu bom negócio e orgulhoso com o sucesso de sua aparência de mau. Nada há para que temas.
- Assim espero, meu caro. Peço a Deus que meus temores sejam infundados. - murmurei, por entre um suspiro.
- Não será preciso Deus para perceber isto, ó Fidalgo. Agora durma, estás horrível. Esqueça aquele idiota da biblioteca; não passa de um palhaço. Se necessitares de algo, chama. Boa noite.
Cedric deixou meu quarto. Minha cabeça doía, meus músculos estavam tensos. A figura daquele indivíduo mórbido não saía de meu pensamento. Deitei-me, mas não consegui relaxar. Quando adormecia, cruéis pesadelos atormentavam-me. Foi uma noite horrível.
Acordei muito tarde no dia seguinte; passava da uma hora. Um cansaço sem fim tornava meus movimentos lentos, pesados. Chamei Alfred diversas vezes; estranhei o fato de ele não aparecer com meu desjejum. Embrulhei-me em meu robe de chambre e saí. Encontrei a arrumadeira no salão onde costumávamos fazer as refeições. Parecia assustada. Perguntei-lhe por Alfred; disse não saber onde ele estava desde a noite anterior. Queria servir-me o café; recusei. Tomei apenas um gole de chá.
- Onde está Cedric, Marge? - perguntei.
- Milord? Está na biblioteca, senhor, com aquele indivíduo horrível, desde manhã cedo - respondeu ela, tensa. E acrescentou, baixando a voz: - Fique com Milord, senhor, eu lhe imploro! Não o deixe mais tempo sozinho com o Viajante, pelo amor de Deus!
- Mas, por que, Marge? O que pode acontecer a Cedric? - retruquei, aparentando calma - que não tinha.
- Porque senão ficaremos sem ele! - respondeu a moça, trêmula.
Assegurei-lhe que acompanharia o Lord todo o tempo que pudesse e pedi que continuasse seu serviço em paz. Ela se retirou e eu me dirigi à biblioteca. Ouvi vozes; bati na porta e entrei.
- Ora, vivas! Nosso Fidalgo aparece, finalmente! - exclamou Cedric - Venha, junta-te a nosso agradável colóquio. Toma uma cigarrilha. Sabes tu, meu caro amigo, que nunca imaginei ser tão comunicativo? Pois é verdade, já que passei boa parte da manhã conversando com nosso hóspede, falando por mim e por ele. Que te parece?
Estranhei a feroz ironia de Cedric. Aparentava irritação a custo contida; o desconhecido, porém, permanecia silente, imóvel, olhando-nos. Tentei amenizar a situação:
- E então, senhores? Já fecharam o negócio de coleções?
O Viajante fixou seus olhos em Cedric, e disse, pausadamente:
- Milord ainda não me concedeu tal honra.
- Estava à tua espera, meu caro. - cortou o Lord, sorrindo friamente - Gostaria de contar com teu parecer. Te importas?
- Absolutamente. Que tal se tratássemos disso logo?
Queria que tudo se resolvesse o mais rápido possível para que o Viajante fosse embora e nossa vida voltasse ao normal. Passamos para uma vasta sala contígua à biblioteca, onde jaziam as antigüidades. Era a parte do Solar que mais me agradava, e onde me deixava ficar, absorto, horas a fio, estudando os objetos, adentrando outras épocas, voltando no tempo. Percebi que Cedric aborrecia-se em deixar aquele indivíduo entrar ali, e que este pouco se importava com isso, encerrado em seu teimoso mutismo.
Lord Hommersfield foi exibindo ao Colecionador diversos objetos - de menor valor, como havia dito anteriormente - a fim de desembaraçar-se dele. O indivíduo examinou todos eles de forma fria, quase indiferente, e sempre mudo. Passeou pelo aposento, remexeu alguns colares, observou alguns vasos, abriu algumas caixas de laca chinesa e se deteve, por fim, em frente à horrorosa máscara indiana.
- Para afugentar maus espíritos, não é mesmo, Milord? - perguntou ele, saindo finalmente de seu obstinado silêncio.
- Assim se tem dito - respondeu Cedric, seco.
- Objeto inútil... - disse o Colecionador, dirigindo a meu amigo seu sorriso mau.
Cedric não respondeu. Remexia os anéis ininterruptamente, com o cenho franzido. O que teria causado a irritação de meu amigo? Teria surgido entre ele e o Viajante alguma questão que eu desconhecia, pelo fato da ausência, durante o transcorrer da manhã? Seria o desprezo com que o Colecionador olhava seus caros tesouros? Ou mera relutância em ter que se desfazer de algum objeto? Pensei, igualmente, ser sua raiva determinada pela própria presença daquele homem sinistro em sua casa, cuja existência fora durante muito tempo a melhor piada que meu Lord ouvira. Parado no meio do amplo aposento abarrotado de História, com as mãos apoiadas em sua tosca bengala, o desconhecido fitava-nos opressivamente. O Lord interpelou-o:
- Pois então? Não se decidiu por nenhum?
- Milord possui, deveras, algo que me interessa amiúde. Não está, entretanto, disposto ainda a cedê-lo a mim. Quando for o tempo, então, nosso negócio estará concluso, certamente. Por ora, não.
- Hei de assegurar-lhe novamente, senhor, de que não lhe cederei coisa alguma. Haverá de pagar qualquer preço por aquilo que quiser; não sou benfeitor e o senhor não é o tipo de indivíduo que mereça doações. - replicou Cedric, irritado.
- Milord, não seria de boa política retomarmos o assunto tratado por nós durante a manhã. Apenas reitero o que disse: a hospitalidade me foi oferecida voluntariamente por Milord; dela me aproveitarei. E aceitarei, para minha coleção, apenas aquilo que desejo, e que Milord haverá de ceder-me.
- Eu sou o dono deste Solar! É minha propriedade, são meus objetos! Eu decido quem fica em meus domínios. Proponho-me a ceder algo meu quando e a quem bem entender! E não será um qualquer mudo e maneiroso que regrará minhas atitudes! - exclamou meu amigo, exaltado. Nunca o vira assim, antes.
O desconhecido permaneceu parado no meio do cômodo. Não esboçou reação; apenas disse, muito seguro:
- Se aqui cheguei, foi porque fui chamado; se entrei, por ter sido convidado. Não me incomodo se não ouviu os conselhos - por sinal inúmeros - que lhe foram dados, Milord. Asseguro-lhe, apenas, de que se foi seu livre arbítrio que o levou a chamar-me, será o meu que me determinará partir.
Tendo dito isto, retirou-se lentamente, retornando à biblioteca. Percebi que mancava discretamente. Cedric, lívido, trêmulo, agarrava-se ao espaldar de uma cadeira, fincando-lhe os dedos. Aproximei-me dele, a fim de falar-lhe, acalmar-lhe; antes, porém, que eu pudesse articular palavra, virou-se bruscamente e atravessou a largas e duras passadas o cômodo, precipitando-se violentamente na biblioteca. Segui-o, preocupado. Cedric aproximou-se do Viajante, que permanecia calmamente sentado na mesma poltrona onde estivera na noite anterior, e segurou-lhe o braço com força, obrigando-o a erguer-se. Bradava:
- Não permito que adentre minha casa e me afronte desta maneira! Exijo o respeito que me deve! Se está aqui é porque o deixei entrar, e aqui ficará enquanto eu quiser! E não pense o senhor que sua encenação macabra seja capaz de assustar-me; para mim, o senhor não passa de um imbecil, de um aproveitador!
Tentei intervir, já que a situação tornava-se insustentável. Cedric, entretanto, afastou-me com um repelão. Continuava segurando o Viajante pelo braço, mas o indivíduo parecia indiferente. Olhando fixamente meu amigo, disse-lhe:
- Pouco me importo com aquilo que pensa de mim, Milord. Uma vez em sua casa, dela só sairei quando obtiver o que quero. Está no livro, está na lenda. Milord foi avisado; dar-me-á o que quero... querendo ou não.
- Ponha-se daqui para fora, ou o matarei! - ordenou Cedric, largando-lhe o braço e apontando porta da varanda.
O indivíduo não esboçou reação imediata. Cedric tinha os olhos fixos nos dele; encaravam-se ferozmente. O desconhecido, então, abriu um largo sorriso, maligno, monstruoso, diabólico, que chegava a desfigurar-lhe o rosto. Pousando a mão no ombro de meu Lord, disse-lhe em voz baixa, profunda, cava:
- Milord não me deseja em seu Solar, não é verdade? Pois me ponha para fora dele...se for capaz.
Cedric não esperou nem um instante. Ergueu as mãos a fim de segurar o infame pelo colarinho e arremessá-lo no corredor. Antes que o pudesse fazer, porém, ficou subitamente paralisado: o desconhecido segurara com força os ombros de Cedric e mergulhara seu olhar no dele. O Lord parecia hipnotizado, e palidez mortal assomou seu rosto. Corri em defesa de meu amigo; o olhar que me lançou então o sinistro Viajante explicou a reação de Cedric, gelando-me o sangue nas veias: eu vira a morte em seus olhos! Recuei, aterrado. O Colecionador soltou Cedric e disse-lhe:
- Não desperte minha ira, Milord. Não está preparado para aumentar meu acervo, mas dentre em breve estará. Ficarei nesta biblioteca até que venha me oferecer, por sua própria vontade, aquilo que desejo e que somente assim posso obter. E lembre-se, Lord Hommersfield: é inútil tentar expulsar-me; Milord o sabe. O Viajante, o Colecionador, Aquele que Virá, nunca deixa a residência onde foi aceito sem levar dali o objeto de sua coleção. É o anátema do qual tanto se riu, Milord, que agora assoma seus umbrais.
Cobriu sua cabeça com o capuz de seu manto e tornou a sentar-se, imóvel, as mãos muito brancas cruzadas sobre o castão tosco de sua bengala. Aterrorizado, arrastei Cedric, que permanecia parado, estático, no mesmo lugar, até a porta da biblioteca, a qual fechei com estrondo. Levei-o até a sala de banhos, sentei-o em uma cadeira que ali havia. Meu amigo não apresentava nenhuma reação. Embebi um lenço em água-de-colônia e coloquei-o sobre sua testa; friccionei seus pulsos com álcool. Inútil. Desesperado, segurei-o pelos ombros e pus-me a sacudi-lo violentamente, exclamando:
- Reaja, Cedric! Pelo amor de Deus, não sucumba! Não te deixes levar pelo Colecionador! Seja forte, meu amigo, reaja, eu te peço! Por Deus, reaja, homem!
Um pouco de cor reapareceu, aos poucos, no rosto de Cedric. Minutos depois ele endireitou o corpo, olhou em redor, procurou apoio. Cobriu a face com as mãos e disse, numa divagação:
- Não posso acreditar no que acabou de ocorrer...Não sou eu mesmo, ao que parece! Como pude deixar que aquele imbecil me dominasse, me subjugasse de forma tão vergonhosa?...Que absurdo!... - e completou, virando-se para mim, jogando longe o lenço que eu pusera em sua testa: - Meu caro, o que houve com este projeto humano que aqui vês? Teu Cedric não passa de um grande poltrão, eis o fato...
- Ele tem olhos de morte, Cedric. Tu não és covarde, ele é que não é humano! Vejo algo de terrível cada vez que se refere à sua coleção, ao seu acervo, às suas viagens...O Colecionador irá nos matar, Cedric! Nós somos as peças de sua coleção, não percebes? - exclamei, desesperado.
- Ora, não seja tolo! Ele é tão humano quanto nós! Isto é ridículo! É um ladrão esperto, isto sim! Tenta impressionar-nos com estas atitudes estranhas, inumanas em teu entender, a fim de obter o que desejar. Mas, se pensa o nosso amigo que cederei a seu cerco, está muito enganado. Lord Cedric Hommersfield não se curvará a qualquer um, seja humano ou besta! É este o jogo, então? Pois vamos a ele! Alea jacta est!
- Deixe de bravatas, Cedric. É perigoso demais brincar com estas coisas, tens a prova agora! Por que não aprendes? Fujamos! Deixemos tudo isto para trás. Salvemos nossas peles!
- Se é este o teu desejo, amigo, foge. Boa viagem. Eu permanecerei e lutarei até o final. Sou muito novo para desistir; uma tola superstição não me fará deixar meus bens. Meu Solar me é caro, meus objetos, as damas também. Esta foi a última vez que me irritei e sucumbi. O imbecil que fique na biblioteca; que vença o melhor.
- O que houve entre vocês esta manhã? - perguntei.
- Não quero mais falar sobre este assunto. - foi a resposta.
Calei-me. Ele acendeu uma cigarrilha para si e ofereceu-me outra. Fumamos em silêncio, quedos no fresco ambiente da sala de banhos, como se a fumaça das cigarrilhas selasse por nós, no ar, um pacto solene de união contra aquele entrincheirado na biblioteca. Não conseguia, porém, retirar de minha mente aquele olhar maligno, mortal.
- Onde está Alfred? - perguntou Cedric, retomando seu ar habitual.
- Não sei. A criada disse que ele desapareceu desde ontem à noite - respondi, admirando nossa súbita frieza.
- Com certeza evadiu-se, temendo o estranho. É, meu caro, estou bem amparado... Tanto pior! Olhe, Fidalgo, precisamos pelo menos de tomar um gole de café. Se fomos derrotados de forma tão fragorosa, com certeza foi em virtude do jejum. Reabilitemo-nos para que possamos vencer este Viajante; não o quero aqui atrapalhando meu sarau da próxima quinta-feira.
- Mas, Cedric, tens certeza de que... - comecei.
- Que queres tu, afinal? Que eu chame um detetive? Um padre? Um exorcista? Que compre um colar de flores de alho? Um ostensório bento? Francamente! - replicou meu Lord, contrariado.
Emudeci, enfiando as mãos nos bolsos do robe. Cedric chamou a criada. Ela não apareceu. Tocou mais forte a sineta usada para chamar a criadagem. Nada.
- O que há com os serviçais? Debandada geral?
Insistiu com a chamada. A criadagem do Solar, curiosamente, não era numerosa: era formada por Alfred, Marge, a cozinheira e o jardineiro. Uma lavadeira, que também servia como engomadeira, vinha ao Solar dia sim, dia não. Cedric preparava-se para ir atrás de seus serviçais quando Nelly, a cozinheira, excelente senhora, apareceu, aflita:
- Perdão, Milord, se demorei a atender a seu chamado. Ouvi quantas vezes Milord tocou, mas não pude vir mais rápido. Estou só na cozinha, e Edward está cuidando do jardim.
- Onde estão Alfred e Marge? - perguntou Cedric.
A criada, com as doces feições entristecidas, respondeu, baixando os olhos:
- Não sei, Milord. Alfred está desaparecido desde a tempestade de ontem; Marge estava comigo pela manhã, mas, depois que voltou do salão, onde disse que se encontrou com o senhor seu amigo, embrenhou-se no jardim e não voltou mais. Sinto medo, Milord. - acrescentou ela, torcendo uma das pontas do avental muito branco.
- Ora, não te preocupes, cara Nelly; não há motivo algum para temores. Peço-te apenas que apresses o almoço o máximo que puderes, já que morremos de fome. E lembra-te: ignora a biblioteca, não te ocupes do imbecil que lá está. Tudo não passa de uma grande tolice. Podes te retirar, Nelly.
A boa senhora seguiu pelo corredor, persignando-se. Meu amigo convidou-me a ir ao jardim, dizendo que o ar fresco nos faria bem. Concordei plenamente. Lá encontramos o velho Edward, o jardineiro, inconsolável:
- Olhe só, Milord, como alguém pode ser tão covarde? Olhe minhas margaridas, que plantei aqui, em volta do caminho que traz ao caramanchão, todas murchas, todas mortas...
- Mas, meu bom Edward, como podem ter morrido as margaridas se a chuva de ontem faria brotar até mesmo árvores em um deserto? - perguntou Cedric, retomando seu habitual sorriso.
- Não foi a chuva que matou minhas margaridas, Milord... Elas morreram foi de tristeza... de dor... Foi ele quem as matou, Milord, só de passar por elas, só de olhar para elas... Não adiantará replantá-las, pois morrerão. Todas elas. Todo o meu jardim querido será em breve um amontoado de folhas secas. Digo-lhe, Milord, metade de mim morrerá com este jardim... Com licença.
Retirou-se, lentamente, conversando com as flores como numa despedida. Cedric olhava-o, pensativo. O velho ainda virou-se para dizer:
- Sem faltar-lhe com o respeito, Milord, ainda lhe digo uma coisa a mais: enquanto este indivíduo estiver em seu Solar, nada permanecerá vivo ou viçoso. As plantas sentirão primeiro; o resto, perecerá depois.
Sumiu numa curva dos canteiros. Cedric virou-se para mim e exclamou, vivamente contrariado, abrindo os braços:
- Será possível que todos aqui enlouqueceram? Ou eu enlouqueci e ninguém quer me dizer? Desde quando uma coletânea de coincidências pode transtornar tanto a vida de um homem? Se eu soubesse que esta história me acarretaria tantos dissabores, eu a teria ignorado! E eu pensando que me divertiria! Pobre de ti, belo Cedric!
Atirou longe a ponta da cigarrilha. Abaixei-me e colhi uma das margaridas mortas. O velho jardineiro estava certo: a flor parecia haver definhado de pura tristeza. Agoniado, atirei-a no meio do canteiro. Notei, inclusive, que algumas folhas das árvores menores começavam a amarelar. Relanceei um olhar até a biblioteca; por entre as cortinas, o Viajante nos observava. Ao ver-me, contudo, retirou-se rapidamente. Comentei o fato com Cedric. Ele disse, simplesmente:
- Quero mais que ele vá aos infernos. Que morra na biblioteca! De lá, disse que não sairá. Pois bem! Lá ficará sem água, sem comida, sem nada. Quero ver se em três dias - no máximo - ele não pedirá socorro e nos deixará.
- Posso ser sincero contigo, Cedric? - perguntei.
- Deve. Que queres?
- Por que não dás logo a este homem aquilo que ele quer? Tu és extremamente rico; és Lord, és moço e és belo. Não necessitas de nada! Se perderes muito do que é teu, tuas amizades, tua inteligência sem par e teu título se encarregarão de reerguer-te. Eu mesmo me ofereço, neste caso, para ajudar-te em tudo. Entrega ao Viajante aquilo que quer e estará tudo findo.
- E pensas que já não cogitei disto? Mas, como dar àquele imbecil o que ele deseja se não diz o que é?
- Mas já perguntaste?
- Como não? Passei metade da manhã de hoje tentando arrancar dele o que coleciona e o que quer. É inútil, contudo. Apenas diz que tenho o que deseja e que eu lho darei no momento oportuno. Tendo em vista essa absurda teimosia, resolvi não lhe dar nada até que se resolva a deixar de agir infantilmente e me diga o que quer. Mas, chega disso, está me dando náuseas; vejamos se Nelly já serviu o almoço. Tenho a fome de um urso.
Segui-o, contrariado. Aquele silêncio do Viajante parecia-me ridículo e, ao mesmo tempo, perigoso. Como estava tentado a atribuir-lhe existência sobrenatural, comecei a entrever objetos mórbidos de coleção que ele poderia ter. Além disso, o fato de as flores terem morrido daquela forma, sendo que estavam maravilhosamente viçosas, e de as demais árvores estarem amarelando dava mais força às minhas conjecturas. Um frio percorreu a minha espinha; estaria aquele ente colecionando a vida de suas vítimas, educadamente chamadas de anfitriões? Guardaria ele nossas almas naquele alforje surrado, para depois juntá-las todas em uma só e revigorar-se em suas forças? Tornei a olhar a fachada do solar; a tonalidade mais escura das pedras e o dia tristemente nublado pareceram confirmar minha tese. Assustado, procurei recalcá-la nas profundezas de minha mente. Nunca a diria a Cedric.
- Estás muito calado, meu fidalgo. O que lhe vai à mente que não te permite falar? - perguntou o Lord, risonho - Por acaso articulas um modo de executar aquele que se apoderou indecentemente de minha biblioteca? Ou cogitas a respeito do que nos espera na cozinha?
- A segunda opção talvez seja a mais correta, amigo - respondi, encobrindo minhas preocupações - E que tal um joguinho de cricket, mais tarde?
- Não vejo nada melhor para fazermos, meu caro. E torno a repetir: três dias de sede e inanição corrigem qualquer engraçadinho.
O restante do dia transcorreu normalmente. Eu e meu amigo nos entregamos às nossas distrações e ocupações habituais, sempre nos esforçando para esquecer o que ocorria. Somente tivemos de alterar nosso lugar de fumar; despejados da biblioteca, passamos à varanda.
Três dias se passaram. Cedric parecia ausente; as distrações não faziam mais o efeito esperado. Também sentia emoção análoga; atormentava-me a idéia de que aquele homem fechado naquele cômodo por tanto tempo não havia manifestado fome, sede ou enfado. E tudo no Solar parecia triste: o jardim ficara com aparência de abandono, olvidando os esforços do bravo Edward; o solar transmitia uma sensação de lenta decadência e os pássaros já não cantavam com a mesma alegria. Até mesmo o salão onde ficavam as antigüidades já não parecia mais o mesmo; perdera o seu ar de repositório da História para se tornar apenas um depósito de trastes antigos. Cedric, por sua vez, ignorava tais acontecimentos, recusando-se me ouvir falar deles. Em verdade, creio que ele apenas se recusava a aceitá-los, irredutível em sua posição de cético, que se tornava absurda e ridícula em vista dos acontecimentos.
Na noite do terceiro dia, eu fumava calmamente na varanda, observando o céu pesado de nuvens, quando Cedric aproximou-se de mim, muito sério. Convidou-me a sentar no salão das antigüidades; queria conferenciar. Apaguei a cigarrilha e acompanhei-o. Depois de acomodados, ele disse:
- Meu caro, sou forçado a concordar que o Viajante é muito mais forte e inteligente do que pensei. Subestimei suas forças; confesso que errei. Peço-te que me acompanhes até a biblioteca; quero que me ajudes a ter com este indivíduo indesejável uma conferência civilizada e uma negociação inteligente, livre de velhacarias. Ele está atrasando minha vida; nunca cancelei um sarau e... nunca vi minha propriedade em abandono tão grande. Perdi dois empregados, que não consigo substituir; perdi minha alegria e minhas flores. Estou farto. Que achas?
- Excelente idéia, meu amigo. Vamos até lá e resolvamos este problema que está a me dar nos nervos, também.
Dirigimo-nos à biblioteca; hesitamos, porém, por questão de segundos, a abrir a porta. Cedric murmurou uma praga e adentrou o cômodo. O indivíduo estava sentado no mesmo lugar em que o deixáramos três dias atrás, e parecia esperar nossa chegada, pois baixara o capuz e olhava fixo em nossa direção.
Sentamo-nos nos mesmos lugares onde estivéramos na noite em que a tristeza adentrara nossos umbrais. Cedric encarou-o e disse, calmamente:
- Sou forçado a reconhecer que é indivíduo de fibra, senhor. Resistir todos esses dias é mesmo coisa de um homem singular. Bem, não vim aqui, entretanto, para elogiá-lo, mas sim para propor-lhe algo que será agradável a nós dois. É o seguinte: o senhor deseja algo meu, embora não especifique o que é; diz que eu, um dia, certamente, viria lhe oferecer. Pois bem; esse dia chegou. Venho aqui oferecer ao senhor Colecionador qualquer coisa que desejar de antigüidade ou modernidade existente nos salões desta casa. A princípio, tinha pensado em... fazer um abatimento de preço, mas isso seria um tanto quanto... mesquinho. Ofereço-lhe então aquilo que quiser retirar daqui, não farei objeções. Pode escolher. Assim, faremos nosso bom negócio e teremos a certeza de que não nos reveremos nunca mais, hipótese que agradará tanto a mim quanto ao senhor.
Percebi o quanto estava sendo difícil para Cedric sucumbir àquele de quem tanto rira e duvidara. O Viajante pareceu considerar a oferta por alguns instantes. Depois, dirigindo seus olhos negros para meu Lord, disse:
- Milord, percebo a sinceridade de suas palavras, apesar de serem custosas de serem ditas. A proposta é tentadora, confesso; seu Solar possui realmente tesouros que despertariam a cobiça de qualquer um que aqui viesse. Todavia, não se encontra em sua proposta aquilo que desejo. Milord não inclui entre as maravilhas que me ofereceu o objeto de minha coleção. Portanto, lamento não ser esta ainda a ocasião de fazermos nosso negócio.
Cedric alçou a sobrancelha, incrédulo. Percebi que se irritava paulatinamente e temi que a cena da vez anterior viesse a se repetir. Por isso, resolvi intrometer-me:
- Caro senhor, realmente não consigo entendê-lo, perdoe-me. Meu amigo lhe oferece qualquer preciosidade deste Solar e o senhor simplesmente despreza a oferta dessa forma? Que tipo de Colecionador é, enfim, que desdenha aquilo que todos dariam milhões para ter e que lhe é oferecido com tanta abnegação? Creio que seja o senhor então colecionador de paciências ou sanidades humanas, já que sua atitude suscita a perda de ambas!
- Não perca seu tempo, meu caro, já sei o que este senhor quer - atalhou Cedric, colérico - Ele deseja que eu lhe abra as portas de meu quarto e lhe deixe retirar de lá qualquer objeto, pois sabe que é ali onde guardo meus verdadeiros tesouros. Pois saiba o senhor que cada objeto daquele faz parte de mim; não me separarei deles nem que tenha de suportar sua abominável companhia pelo resto de minha vida!
- Faça Milord aquilo que bem entender. - replicou o Viajante, com seu sorriso mau - Pouco me importo com aquilo que guarda em seus aposentos. Milord sabe que só sairei daqui quando obtiver aquilo que desejo; quando estiver apto a ceder-me, aqui estarei para receber.
- Mas como Lord Hommersfield poderá ceder-lhe aquilo que o senhor deseja se não diz o que é? Não somos adivinhos, nem paranormais; não lucramos nada com essa brincadeira de extremo mau gosto, nem mesmo o senhor. Portanto exorto-o, em nome do Lord, a dizer o que deseja a fim de que tudo isso possa se resolver da melhor forma possível! - falei, na esperança de que o Colecionador nos desse uma posição.
Ele virou-se para mim e respondeu:
- Senhor, infelizmente este assunto só poderá ser tratado entre mim e o Lord, visto que foi ele quem me convidou a vir ao seu Solar. E, quanto ao que quero, Milord sabe do que se trata; não quer, apenas, aceitar. Este contratempo poderia ter sido evitado de Milord tivesse dado crédito ao que lhe disseram. Se escolheu ser cético, não há nada que eu possa fazer. Está escrito; quem quiser ler, que leia... e creia.
Cedric estava de costas para o Viajante e amassava, ferozmente, o lenço de cambraia que tirara do bolso de seu paletó. Profunda cólera o tomava; continha-se a custo. Por fim, dominando-se, tornou a dirigir-se ao Colecionador:
- Com que então o senhor prefere manter a situação nestes termos? Condena-lo-ei, então, a passar o resto da vida nesta biblioteca, mas não me curvarei tão facilmente às suas pretensões.
- Nem que espere a eternidade, Milord, mas terei o que quero. Será sempre assim, como sempre tem sido. Não há como impedir, e o senhor não será exceção.
Cedric deixou a biblioteca, furioso. Levantei-me com o firme propósito de esmurrar aquele sujeito; suas palavras, entretanto, cortaram cerce minhas intenções:
- Não adianta tentar me esmurrar ou expulsar, senhor. Sabe melhor do que Milord seu amigo que é inútil. Conhece-me o suficiente para ter certeza de que o que digo é a pura verdade. Sei que teme por seu grande amigo, mas, que posso fazer? - sorriu cinicamente - Apenas atendi a seu chamado. Que isso lhe sirva de lição... e de exemplo, senhor.
Entrevi o mesmo olhar de morte que o Colecionador me dirigia por debaixo de seu capuz, bem como seu abjeto sorriso mau. Recuei, e saí correndo da biblioteca, assolado por medo terrível, enquanto maldosa gargalhada ecoava pelos corredores. Fui ao encalço de Cedric. Encontrei-o na sala de jantar, em total desalinho, atirando contra as paredes tudo o que lhe chegasse ao alcance das mãos. Havia ingerido mais da metade de uma garrafa de xerez, bebendo pelo gargalo; estava à beira da total histeria. Gritava, brandindo os punhos cerrados:
- Com mil demônios! Que fiz eu para merecer tal provação? Foste tu, meu pai, que dos infernos enviou este ser asqueroso para me destruir? Que miserável covarde eu sou, que não tem coragem de pôr as mãos nesse desgraçado, jogá-lo porta afora e arrastá-lo por aquela estrada, esfolando-o vivo? Que força absurda é essa que me impede de matá-lo, expulsá-lo, evitá-lo? Por que tudo isso? Por quê?
Tentei aproximar-me dele, a fim de acalmá-lo. Ele, porém, me repeliu:
- Não me toques! Deixa-me em paz, eu e minha abjeta covardia! De agora em diante não passarei de um serviçal, de um escravo daquele que ocupa minha querida biblioteca! Arrojar-me-ei ao chão para que ele não suje seus sapatos quando caminhar, segurarei as pontas de sua capa surrada quando ele se transformar no dono absoluto de meu Solar! Ah, Cedric, como pudeste descer tão baixo, tão baixo, tão baixo...
Sentou-se no chão, a um canto, chorando convulsivamente. Sentei-me a seu lado, oferecendo minha solidariedade. Ele enxugou as lágrimas e olhou-me. Só então percebi que elas não se referiam, em verdade, à sua pretensa vergonha. Ele havia entendido o desejo do Colecionador. Profunda dor tomou conta de minha alma; meu melhor amigo - talvez o único - era vítima de suas próprias mãos.
- Agora me explique o porque disso, meu Fidalgo - disse Cedric, passando a mão em seus cabelos, puxando-os para trás - Por que esta intransigência? Todos no mundo têm que ser exatamente iguais? Será que nem neste campo pode-se ter escolha própria? Quem queimou a bandeira da liberdade? Há tantos céticos pelo mundo, tantos incrédulos, por que eu terei de pagar por todos eles? Que têm de melhor do que eu? Einh? Responde! Tu sabes?
- Não quero ser inconveniente, meu caro amigo, mas uma coisa é certa: tu podes não ser o único cético no mundo, mas, com certeza, és de todos o mais debochado. Talvez seja isso... Como posso saber? - respondi, sufocando um soluço. O que Cedric precisava era de apoio, não de mais desespero.
Um sorriso tristemente cínico surgiu em seus lábios. Um suspiro escapou de seu peito; levantou-se e, dirigindo-se a mim, disse:
- Bem, meu caro, é lamentável... mas é isto. Terei de aturar a presença do Colecionador em minha casa por muito tempo, pois não lhe darei, tão cedo, aquilo que quer. Não estou disposto a sucumbir. Vamos, levanta-te! Terás teu Cedric inteiro e ativo a incomodar-te por muitos anos, com certeza! Se o Colecionador tem a eternidade para esperar, pois que espere!
Como explicar o que me ia ao peito? Sabia que toda aquela súbita euforia de Cedric não passava de encenação; não resistiria por muito tempo à presença incômoda daquele indivíduo da biblioteca. Era à custa de imenso esforço que recalcava minha tristeza; revoltava-me com aquela situação. Diabos, por que ele não me dera ouvidos, e aos demais que o aconselharam? Maldito destino que lhe pusera aquele maldito livro nas mãos!
- Não te entristeças por minha causa, amigo. Continuo o mesmo incrédulo de sempre. Aquele que está na biblioteca é, para mim, apenas um mero assassino; confesso, contudo, que seus métodos são do arco-da-velha... Quem o terá mandado? Achas, ó Fidalgo, que somente por causa deste objeto esdrúxulo de coleção eu começarei a acreditar em Deus, Diabo, Fadas, Bruxas, Anjos, Santos e demais seres além da imaginação? Pois que não; nego-os até o fim, nem que seja só para teimar. E outra coisa: será a cura total para o meu tédio. Mais cedo ou mais tarde ele chegaria, imenso, intransponível... Este fato serviu apenas para evitar que tal viesse a me acontecer; agradeço-o, em verdade.
Permaneci calado. Era já alta madrugada; o silêncio, total. Cedric tomou mais um gole de xerez e me estendeu a garrafa; tomei um grande gole, também. Devolvi-lhe a garrafa, que ele pôs sobre a mesa. Falou-me:
- Vamos dormir, meu caro. Ou tentar, pelo menos...Que estrago eu fiz aqui, einh? Idiota infantil! Como se isso...
Interrompeu-se bruscamente. Seguiu para o quarto; acompanhei-o. Já à porta, ele me disse:
- Meu grande amigo, o único que verdadeiramente possuo, é obrigação minha dizer-te isso: não te prendas por minha causa. Esta desgraça, este anátema é apenas meu; proíbo-te de te acabares comigo. Assim, se quiseres ir, vai. Serei grato a ti até o último momento. É inaceitável que pagues comigo por meus erros - se é que os cometi. Volta a Londres. Só te peço uma coisa: não te esqueças nunca deste teu amigo Cedric Hommersfield...
- Seria indigno de minha parte abandonar-te logo agora. Ficarei até o fim.
Abraçamo-nos, comovidos. Ele se recolheu, mas eu me deixei ficar parado no corredor. Uma idéia louca cruzou-me o cérebro. Cedric era mais novo do que eu, era belo, mais apegado à vida. Como ele mesmo costumava dizer quando éramos acadêmicos, eu era seu lado escuro; nunca tive o mesmo amor pela existência que ele, e era melancólico por natureza, muito embora me esforçasse para emendar-me. Resoluto, dirigi-me à biblioteca e, sem delongas, falei ao Viajante:
- Senhor, já é de meu conhecimento o objeto de sua coleção, de seu “acervo maldito”, como diz o livro. Pois bem; seria a maior das crueldades arrancar de Cedric aquilo que ele mais tem em conta, apesar de suas constantes queixas de tédio. Assim sendo, ofereço-me para integrar, em seu lugar, a sua horrenda coleção.
- É um belo gesto, senhor, mas absolutamente inútil. Apenas aquele que me chama é alvo de meus interesses. Sei da amizade que tem pelo Lord; tenha a consciência tranqüila, contudo. Ele perece apenas por sua própria leviandade. Mas, se o senhor também desejar pertencer ao meu acervo, basta convidar-me para uma...visita amigável.
Calou-se. Aquilo era despedir-me. Revoltado com seu cinismo fácil, dirigi-me à varanda, embrenhei-me no jardim. Através do pálido luar que se infiltrava por entre as muitas nuvens que cobriam o céu, pude perceber o aumento da desolação ali reinante. As árvores tinham os galhos quase nus; não restava sequer uma flor. Arrasado, retornei ao meu quarto, recostei-me no divã e passei o resto da noite em claro, fumando, enquanto ouvia os sofridos soluços que vinham do quarto ao lado.
Quantos dias se passaram depois desta noite não me é possível precisar. As horas pareciam arrastar-se, de forma cruel e cínica, como se quisessem testar até onde chegavam nossos limites. O Solar, o belo edifício onde meu Lord era senhor absoluto e apaixonado, nada conservava de seu antigo esplendor: tinha as salas abandonadas, entristecidas, empoeiradas; as antigüidades, as pratarias, os objetos de arte, tudo jazia melancolicamente em seu lugar, cobertos de pó e de teias de aranha. Do jardim nada mais restara além dos troncos secos das árvores. Estávamos completamente sós; Nelly não mais foi vista desde o dia em que falamos com o Colecionador pela última vez, e o bom e velho Edward deixou-se acabar juntamente com seu jardim.
Cedric também se permitia acabar, deixando seu ânimo esvair-se como areia de ampulheta. Em vão tentava eu trazer-lhe um pouco de paz ou distração; apenas me olhava e sorria, um sorriso que traduzia toda a ironia da situação em que se encontrava. Persistia, porém, em adiar o máximo possível a hora em que entregaria, com suas próprias mãos, sua alma ao Colecionador. Uma luta sem igual travava-se em seu interior: de um lado, a vã esperança de que o Viajante desistisse de seu propósito; de outro, a realidade inexorável que demonstrava ser aquela procrastinação uma perda de tempo.
Certa manhã, Cedric entrou em meu quarto. Estava muito pálido, trêmulo, mas, de certa forma, controlado. Caminhou em minha direção e disse, comovido:
- Despeço-me de ti, ó Fidalgo. Não posso suportar mais esta situação, é inútil esperar. Que tudo se resolva e acabe; já é hora - permaneceu algum tempo de olhos baixos e, com um suspiro, fitou-me e murmurou:
- Adeus, meu amigo.
Não pude conter o pranto. Abraçamo-nos fortemente. Pousando a mão em seu ombro, falei:
- Sei que não acreditas, mas... que Deus possa salvar-te, meu amigo, e livrar-te desta maldição. É só o que tenho pedido, e só o que desejo.
Um sorriso triste, amargo, perpassou seus lábios. Era clara em seus olhos a dor que sentia; o que fazer, contudo, se era inevitável?...
- Posso acompanhar-te até lá? - perguntei.
- Se quiseres... - respondeu, lacônico.
Quando encontramos o maldito Colecionador, ele já estava de pé no meio da biblioteca. Parecia saber de tudo o que se passara e conhecer a decisão de meu amigo.
-Pois bem, desgraçado, conseguiste vencer-me - disse-lhe Cedric, entre dentes. Pode levar o que quiseres; és mais forte do que eu, com mil demônios. Que se cumpra o que está escrito.
O Colecionador apanhou seu alforje, sua bengala e, baixando o capuz sobre o rosto, disse, lentamente, sem expressão:
- Que seja. Daqui a três dias virei buscar aquilo que me pertence.
Deu-nos as costas e saiu. Eu e Cedric, à janela, observamo-lo ir-se até que sumiu na curva da estradinha de chão. Revoltei-me enormemente, quis correr atrás do desgraçado e atacá-lo, destruí-lo. Cedric deteve-me, todavia; assenti. Sabíamos o quanto seria tolo. Acendeu uma cigarrilha e ofereceu-me outra, como seu costume; serviu, também, uma dose do inseparável xerez para si e outra para mim.
- Façamos nosso último brinde e fumemos nossa última cigarrilha juntos, meu caro Fidalgo londrino. É o melhor que fazemos.
Tomamos o xerez e quebramos os cálices, à russa.
- Ave, César! Os que vão morrer te saúdam! - exclamou Cedric, com um último e breve sorriso.
Lord Cedric Hommersfield faleceu três dias depois, vítima de uma febre cerebral que o atacou na tarde daquele mesmo dia. Antes de entrar em coma, porém, fez-me prometer que nunca mais retornaria ali, e que a primeira coisa que faria ao deixar o Solar seria queimar o abominável livro. Jurei que o faria, e a partir deste instante ele nem falou nem ouviu mais nada. O maldito Colecionador ficou parado, de pé, na curva da estradinha de chão, durante todo o último dia de vida de meu amigo, e dali se retirou, absolutamente indiferente ao olhar de profundo ódio que eu lhe lançava, apenas quando Cedric exalou seu último suspiro.
Eu mesmo sepultei meu amigo ao pé do tronco da imensa árvore, agora totalmente seca, que outrora formava o belo caramanchão do jardim, parte do Solar que tanto agradava a Cedric. Sem trazer nada comigo, a não ser o dinheiro necessário e um embrulho marrom, tomei o caminho, a pé, para a estação, a fim de voltar a Londres. Antes, porém, de embarcar, detive-me em um pequeno descampado e, certificando-me de que me encontrava só, ateei fogo ao embrulho marrom. Olhando as labaredas que lambiam o papel, agradeci ao Destino a missão que me fora concedida, por intermédio de Cedric: a de poder afastar, pelo poder do fogo, a humanidade da ameaça do Viajante, do Colecionador, Daquele que Virá.
Nota: O texto em questão foi escrito pela Regina, que é a autora da Raven nas fics do Expresso Hogwarts. Quem quiser deixar algum comentário, pode fazer vistando o blog pessoal dela, ao clicar AQUI
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