Wednesday, December 27, 2017

Sabá em dias de semana (Nicholas livro)

O Expresso Hogwarts
orgulhosamente apresenta



Sabás em Dias de Semana e outras histórias

**Índice de Histórias e Poemas**


O Poço
O Rubi
Sabá em Dias de Semana
O Colecionador
Noturnos
Questão de Honra


NOTURNOS



Quando o Sol se põe
Quando a noite cai
Quando os olhos se fecham
Os corações mais negros despertam

Emergindo de longos sonhos eternos
Lutando contra labirintos internos
Sorvendo a alma dos tolos
Compondo suas próprias almas
Enriquecendo seu próprio sangue

Com a luz da Lua na face
Com uma dor profunda no peito
Correndo em busca de vida
Buscando , frenéticos , por uma saída
Gritando , enlouquecidos , por um alívio em sua sina

Quando surge o Sol em meio o horizonte ,
Aterrorizados , se escondem
Refugiam-se em seus medos
Fogem de seus sonhos
Deliciam-se com seus pesadelos

E , pacientes , esperam , novamente ,
A ascensão da deusa Ártemis.

**********

Nota: O texto em questão foi escrito pela Ana, que é a autora da Meri nas fics do Expresso Hogwarts, e dos arcos Prelúdio de Sonhos Partidos (com a Lu/Dhara) e Para Sempre na Memória.
O COLECIONADOR



O fato que me proponho a narrar é verdadeiro. Não pretendo, entretanto, merecer crédito de todos aqueles que lerem esse relato. Tenho, contudo, a consciência tranqüila de que não minto; é o quanto basta.

Foi em meados de agosto que tudo ocorreu. Estava hospedado na casa de um amigo que há muito não revia. Ele me escrevera uma carta cordial e ao mesmo tempo apelativa; não suportava mais o tédio que sentia vivendo sozinho em seu Solar afastado da cidade, tédio este que nem seus estrondosos e comentados saraus das quintas-feiras conseguiam demover. Eu era sua última esperança de distração.

Como também padecia do mesmo mal de meu amigo - pois passava dias amargos em Londres, fumando muitas cigarrilhas, suspirando cavamente em longos jogos de bridge, ouvindo as mesmas conversas, os mesmos escândalos, os mesmos comentários -, acolhi com prazer seu convite. Sempre nos divertíramos juntos, quando acadêmicos; a expectativa do retorno destes ditosos dias impediu-me de recusar. Arrumei pequena mala, tomei um coche até a estação e embarquei no Expresso para o interior.

Cheguei ao Solar de Lord Cedric Hommersfield ao final da tarde, esfomeado e cansado. O caminho da estação até ali fora árduo; chacoalhei perto de hora e meia dentro da carruagem abafada, que rolava penosamente pela estradinha de chão cheia de pedras e buracos hostis. Um criado de libré encarregou-se de minha mala e de guiar-me até seu amo.

A visão do Solar encheu-me de curiosidade e de estranho respeito. Não tenho costume de impressionar-me demais com estas coisas, mas foi impossível desligar de mim a bizarra sensação de vida própria que o Solar apresentava. Lembrei-me, risonho, de certo conto de mestre Poe. “Ele deve estar se revolvendo no túmulo” - pensei - “vendo que comparo este luxuoso e recente edifício com seu venerável e bem aclimatado Solar de Usher”.

Algo, entretanto, me inquietava. A fachada de pedra escura, com janelas altas e bem guarnecidas iluminadas pela luz da lua crescente, perturbava-me. Tinha um vago pressentimento mau. O silêncio era quebrado apenas pelo som cadenciado de meus passos e os do criado. Não via o momento de adentrar a casa. Sentia-me ridículo. Um morcego passou voando rente a meu ombro. Estremeci.

Felizmente, fui retirado de meu absurdo temor pela efusiva recepção de Cedric. Esperava-me à porta do vestíbulo; abraçamo-nos fraternalmente. - Seja bem-vindo, Fidalgo londrino! - exclamou, sorridente.

- De coração agradeço, Milord do interior! - respondi, no mesmo tom.

Cedric conduziu-me, tagarelando, pelos cômodos do Solar até o quarto que me destinara. Quase não dei atenção às suas palavras; ficara extasiado com a riqueza do ambiente. Viam-se obras de arte, armas, tapetes, pratarias, todos de origem indiscutivelmente nobre e exclusiva, expostos com extremo bom gosto e inteligência. Meus aposentos eram pegados aos dele; a mobília combinava o luxo à funcionalidade, o que me fez entrever excelentes momentos naquele Solar. Tive de me controlar para não rir às gargalhadas de minha primeira impressão e de meu pressentimento. Pobre tolo, ignorava o futuro!

- Se te ainda bem conheço, o apetite de dez Gargântuas está a roer-te, não? - perguntou-me Cedric.

- Não é necessário ser Gargântua para esfomear-se em viagem de tal quilate! Maldita estradinha!

Assumindo ar profético, Cedric apontou em minha direção e disse, sério:

- Filho, é árido como urze o caminho que conduz ao Paraíso; é isso que torna tão prazerosa a chegada.

Dei uma gargalhada. Ele continuava o mesmo. Deixou-me só no quarto; notei com prazer tratar-se de uma suíte e que meu banho estava preparado. Entreguei-me a ele e, depois, deixei-me guiar pelo criado - figura sisuda e avara de palavras - até a sala de jantar, onde meu anfitrião já me aguardava, metido em um robe de chambre castanho.

Conversamos e jantamos fartamente. Nem o restaurante mais rico de Londres conseguiria oferecer jantar tão fino. Passamos, finda a refeição, para a biblioteca, onde poltronas de formas aconchegantes convidavam-nos ao repouso. Sentamo-nos e, saboreando cigarrilhas, reatamos a conversa:

- Meu caro Cedric, não me canso de admirar este teu Solar. Salomão se sentiria humilhado, aqui dentro!

- Guarda tua admiração, meu amigo; faça com que dure bom tempo. Caso contrário, se esgotará rapidamente e o luxo te enfastiará - é experiência própria. Quanto a Salomão, estou certo de que ele se riria de mim, andaria comigo de braços dados por esses ricos corredores e diríamos, em coro: “E então? Que grande maçada, einh?”

Lembrei-lhe de que seus saraus, comentados até na Capital, poderiam proporcionar tudo, menos tédio. Um leve e malicioso sorriso perpassou seus lábios e, com profundo suspiro, respondeu:

- São meus últimos esgares contra os grilhões do tédio, meu amigo. Confesso que os saraus rendem-me bons momentos de dança e colóquios, os quais certas vezes estendem-se às rendas e lençóis, mas, quando consumatum est...eis o tedium vitae!

Ficou em silêncio, mexendo nos ricos anéis que trazia em seus dedos longos e finos. Contemplei-lhe as feições; não mudara em nada: seus cabelos lisos e finos, de um louro escuro, chegavam-lhe à altura dos ombros. O rosto, de belos traços, estava um pouco mais pálido: davam-lhe vida os olhos castanho-esverdeados, grandes, amendoados, e os lábios sensuais, bem torneados, sempre prontos a entreabrirem-se em um sorriso malicioso e meio cínico

- Para teres uma idéia - continuou ele, acendendo outra cigarrilha -, tenho dado meus saraus, a cada quinta-feira, em um cômodo diferente deste Solar, a fim de escapar da rotina. Cheguei a ponto de receber no porão!

- No porão?! És louco?

- Não. Sou excêntrico. - E acrescentou, com um sorriso: - As damas gostam disto, tu o sabes. Mas, voltando ao assunto, foi um sucesso: o traje exigido era ou mitológico, ou macabro; confesso que foi a única vez em que me diverti, realmente. Fiz até descobertas!

Fiquei curioso. Cedric enumerou-me, então, os tesouros que achara entre a poeira: uma armadura completa; três vasos chineses, da dinastia Ming; um retrato de corpo inteiro de seu avô, certamente colocado no porão por seu pai, devido a inimizades; um livro antiqüíssimo, cheio de ritos mágicos, lendas e sortilégios; uma espada datada do século XIV; livros de Maçonaria; uma máscara indiana e uma estatueta de Buda, esculpida em marfim.

- Espalhei tudo pelo Solar. Se não me engano, a espada está presa à parede de teu quarto. A estatueta de Buda encontra-se em meu toucador e o livro de sortilégios, em minha cabeceira.

Pus-me a rir. Desde quando se dedicara a isto? Ele, o grande incrédulo? Era preferível que deixasse um crânio à cabeceira em memória de Yoric e do excelso William!

- Concordo - disse ele, sorrindo -; entretanto, o grande ateu, como dizes, está apenas comprovando sua opção de vida. Venha comigo; mostrar-te-ei algo, pelo menos, curioso.

Fui seguindo meu anfitrião, com ar debochado, trauteando o Te Deum. Ele deu uma risada. Em determinado momento percebi que uma candeia, na varanda, permanecia acesa e a porta, entreaberta. Censurei o descuido do criado; Cedric, contudo, negou que fosse erro do serviçal:

- Isso faz parte de minha tese... Quase a sua comprovação. - sussurrou, enigmático.

Confesso que não gostei muito daquilo. Senti que meu pressentimento pretendia voltar a angustiar-me. Ao adentrar o quarto de meu amigo, porém, não pude reprimir exclamação de assombro: ele reunia ali, naquele cômodo não muito espaçoso, objetos exóticos e provenientes de diversas partes do globo.

- Que mercado persa, não? - perguntou ele, sorridente, parado em meio aos seus tesouros, de braços abertos - Dou graças, em parte, a meu pai, viajante incansável, colecionador imbatível e milionário excêntrico, suas grandes qualidades, senão as únicas. Mas o ponto é este, meu caro: eis o Vade Mecum do Malefício! Vamos, pegue, não irá morder-te nem paralisar-te.

Ignorando o gracejo, peguei o compêndio amarelado e roído de traças que o belo Cedric me estendia sem abandonar seu sorriso cínico. Estava escrito em tipo gótico, ilustrado de forma a lembrar os antigos estudos alquímicos e o inglês era arcaico. Estimei em um montante invejável de libras o valor daquela antigüidade. Súbito, lembrei-me de perguntar ao Lord:

- Caríssimo Milord do interior, dono dos tesouros da tumba do faraó, o que tem este monte valioso de crendice e bolor com a candeia acesa na varanda?

Cedric achegou-se a mim, pôs a mão em meu ombro e murmurou, em meu ouvido, com voz rouca:

- Amigo... a candeia está acesa e a porta entreaberta a fim de receber Aquele que Virá.

Um calafrio percorreu-me a espinha. Tomado por estranha inquietação, lembrei-me de meus temores quando de minha chegada e senti-os de volta, mais intensos, contudo. Procurei segurança nos grandes olhos de Cedric, que me fitavam, jocosos. Meu susto o divertia deveras! Tentei controlar-me:

- Que coisa ridícula, Cedric! O ar do interior embota as tuas faculdades, definitivamente! Crês, então, que qualquer dia desses serás visitado por Mefistófeles, Merlin, Odin ou as Walkírias? Ou darás um sarau em sua homenagem?

- Espero que venham as Walkírias, meu caro! Neste caso teremos, então, a festa! Mas, por ora, caríssimo, de mais nada saberás. Teus cabelos estão todos de pé; amanhã, à luz do sol, com teu coração livre de qualquer palpitação excessiva e teu cérebro desanuviado, conhecerás a história toda. É tarde, repousemos. Não te direi mais nada, não insistas; não me arriscarei a ter de deixar, ao meio da madrugada, minha cama macia para dormir ao pé de ti, no divã de teu quarto, a fim de acalmar-te. Vamos, não me olhes com tanta ira; o assombro está claro em teu rosto! Isso me lembra nossos serões no tempo em que éramos acadêmicos... Ainda não te livraste de teus pavores? Não fica bem para um homem de tua idade e posição temer escritos de mau-gosto em inglês medievo...

Olhei-o com seriedade. Ele acompanhou-me até meu quarto, sempre sorrindo, e, olhando-me nos olhos, disse:

- Qualquer coisa, é só chamar. Bons sonhos. E não te preocupes: Aquele que Virá não chegará esta noite; mandou avisar antes.

Mal humorado, despi-me e aconcheguei-me nos lençóis de linho. Enquanto não conciliava o sono, pensava naquele comportamento absurdo de Cedric e, de tanto conjeturar, acabei por considerar tudo como uma enorme criancice. Adormeci logo depois, mas meu inconsciente, excitado, incluía em meus sonhos figuras bizarras de viajantes macabros que eu teria tomado como avisos se fosse menos leviano.

No dia seguinte, logo pela manhã, fui desperto pelo mesmo criado metido em sua impecável libré escarlate. Após o desjejum, comunicou-me que Milord me esperava no jardim. Vesti-me e dirigi-me para lá. A manhã estava agradável, o céu azul com poucas nuvens; uma brisa suave balançava os ramos do extenso e bem cuidado jardim. Parabenizei, intimamente, o encarregado daquelas flores maravilhosas.

Encontrei meu amigo sentado sob o caramanchão, em confortável cadeira, de costas para o caminho de grama baixa cercado por pedras regulares, arredondadas, pintadas de branco, que ia da varanda até ali. Vestia um terno claro, tinha uma cigarrilha na mão. Ao seu lado, em delicada mesinha, um cálice de xerez pela metade e um exemplar do Times, intacto. Movi-me silenciosamente a fim de surpreendê-lo; ele, porém, pressentiu minha chegada e virou-se bruscamente. Meu coração quase parou quando avistei as feições horrendas que marcavam o rosto de Cedric! Minhas mãos tremiam convulsivamente e palidez mortal desfigurou meu rosto. Por entre meu terror, contudo, pude perceber a diversão de Cedric, que ria a valer, reclinado na cadeira, com os braços pendentes; tinha em uma das mãos a tal máscara indiana que achara no porão.

- Muito engraçado, Milord! Mais outra destas e vou-me, com amizade ou não, deixando que te afogues de vez em teu tedium vitae! Não ficarei aqui para que te divirtas às minhas custas! - exclamei, irado.

- Sinto muito, meu amigo, mas não pude resistir... Vamos, toma este gole de xerez, estás pálido como a morte... isso! Mas, hás de convir comigo que este pedacinho da Índia é bem convincente, não?

- É horroroso! Para que serve este traste?

- Calma, homem! Muitos matariam por isto que chamas tão levianamente de traste. É utilizada no ritual da deusa Kali e também serve como máscara mortuária, para afastar maus espíritos. E é gordo investimento, meu poeta; vale libras e libras... Outra valiosa contribuição do senhor meu pai para o fausto de seu querido filho.

Após o benefício do xerez, considerei o objeto com maior atenção. Horrendo, concluí.

- Bem, não é de fato um Murilo, mas... tem seu valor - acrescentou Cedric, sorrindo. Todavia, não foi para discutirmos arte indiana que te chamei aqui, e sim por causa... Daquele que virá.

Dirigi meu olhar, involuntariamente, à varanda. A porta ainda estava aberta. Cedric olhava-me, divertido.

- Espero que à luz do dia tudo seja menos perigoso para ti, meu caro - disse. Mas, não nos demoremos mais: vamos ao caso. Contar-te-ei em resumo a lenda deste viajante, escrita aqui no livro, já que a linguagem é por demais rebuscada e acabarias por dormir. É assim: há um indivíduo, um viajante misterioso, sem nome e sem procedência, que vaga pelo mundo a esmo. Pode estar hoje aqui, amanhã no Congo; depende do que lhe traz o passar dos dias. Aguarda sempre que lhe dêem hospitalidade, a qual deve se manifestar da forma que viste, e somente assim: porta aberta e, à noite, candeia que lhe ilumine o caminho. Para um personagem lendário, entretanto, acredito-o muito fidalgo, não?

- Prossiga, Cedric, estou curioso! - repliquei.

-Tanto melhor! Temi que estivesses assustado. Como te dizia, nosso amigo nômade vaga a esmo, à espera de alguém que o hospede, mas possui objetivo singular para tal agir: ele é, também, o Colecionador.

- Ora, essa é incrível! O Colecionador? E qual é o ramo de seu hobby? Objetos que recolhe das residências de seus anfitriões?

- Este é o ponto chave, meu amigo: a lenda não especifica o que o personagem, sempre designado como o “Viajante”, coleciona. Diz apenas, em tom respeitosamente mórbido - como lhe convém, aliás -, que o preço a pagar por aquele que der guarida ao Viajante será a danação, o anátema: “O néscio incrédulo que concorrer para o aumento do acervo maldito do Colecionador trará a si mesmo a desgraça e a perdição eternas”. E acrescenta, inexorável: “Uma vez atravessando os umbrais de uma residência, não a deixará o Viajante enquanto não obtiver o que deseja, e tão somente o que deseja”. E, encerrando, aconselha: “Nunca deixeis abertos os pórticos de vosso lar, pois Aquele que Virá atravessa-los-á e, com ele, a desgraça, a qual se espalhará como a peste”.

Não pude reprimir sentimento de repulsa:

- Que coisa abominável, Cedric! Como podes te divertir com tal aberração?

- Em verdade, não é a lenda em si que me diverte, mas o crédito que a ela conferem. No dia em que tomei conhecimento de nosso douto Viajante, deixei a porta da varanda aberta. Alfred fechou-a, contrariado, sem me pedir permissão. Tornei a abri-la; ele, então, aproximou-se de mim, dizendo em termos respeitosos que eu não poderia agir desta maneira, visto que esta atitude atrairia o Viajante, Aquele que virá, o Colecionador. Inquiri-o a respeito, e ele me repetiu a lenda que eu acabara de ler, assegurando-me da importância de respeitá-la e de sua veracidade. Perdoe-me, meu caro, mas ri-lhe nas barbas, como acabei de fazer contigo. Alfred, muito sério, disse apenas que pediria a Deus que protegesse seu Milord incrédulo dos perigos Daquele que Virá. Desde então tenho pesquisado pelas redondezas a respeito de nosso nômade; houve uma mulher que nem sequer esperou-me terminar de falar-lhe: mal ouviu a expressão “O Viajante”, apressou um sinal-da-cruz e bateu-me com a porta no rosto. Se meu fiel e velho Alfred tem estado sisudo e avaro de palavras como disseste, é por esse motivo. E pela diversão sem fim que retiro de toda essa história.

- E confirmaram algum caso deste...Viajante? - perguntei, retomando meu pressentimento. Aquela lenda afirmada e confirmada por tantos acabou por preocupar-me. Lembrei-me de caso parecido que minha ama contava, quando era pequeno e me recusava a entrar em casa à hora de dormir. Aquilo sempre mexera com meu íntimo e sentia, angustiado, as mãos do presente remexendo as teias e o pó de meus jazigos do passado. Cedric olhava-me, sem me compreender:

- Oh, não. Oh, não! Até tu, Brutus? Não diga que estás crendo em toda esta tolice? Confesso que te atribuía outra personalidade! Acreditas mesmo que tolas histórias de pés de lareira podem vir a acontecer? Pensas que amanhã ou depois aparecerá alguém por aquela porta, tencionando levar meu coração ainda quente em um pote de cobre ou tomar meu sangue em meus cálices de xerez? Isso é ridículo!

- Ridículo ou não, perturba-me. E, desde que aqui cheguei, senti - não ria, falo sério - que algo não estava bem; tive um pressentimento mau e achei a atmosfera pesada. E tu não podes negar que existem forças no mundo que desconhecemos; e não falo de Deus. Já tivemos discussões suficientes a Seu respeito, quando acadêmicos. Refiro-me a predisposições de espírito, da força do pensamento; do poder de uma evocação feita com fé, de uma oração recitada veementemente. Tu hás de convir que há fenômenos inexplicáveis cientificamente ocorrendo pelo Universo e que não podem merecer teu cinismo de homem rico e letrado, Cedric!

Calei-me, exausto. Lord Hommersfield nem sequer se alterara. Seu rosto continuava sereno, seus lábios entreabriram-se em um sorriso no mínimo debochado e seus olhos pousavam sobre mim de forma complacente, enquanto brincava com seus anéis. Depois, com um suspiro, acendeu uma cigarrilha e respondeu-me:

- Caríssimo e estimado Fidalgo londrino, apenas admito um tipo de fenômeno inexplicável existente no Universo: o amor. Fora ele, todo tipo de crendice ou sortilégio, reza ou predição que se me apresentarem só receberão meu notório desdém. Isso prova a natureza frágil do homem: ele precisa sempre de se sentir protegido. Assim sendo, cria para si alguma fantasia inverossímil, inexplicável. A sensação do sinistro traz em si o respeito; crie um ser misterioso, dê-lhe poderes e eis aí um novo deus. Qualquer um pode criar Deus ou Diabo próprios: basta ter imaginação e originalidade. Poderemos sair pelo mundo narrando histórias macabras e absolutamente estúpidas encerrando personagens curiosos e cheios de aura sinistra e necessária, tão concretos quanto a fumaça de minha cigarrilha; entretanto, um dia alguém de espírito fraco - ou, quem sabe, de excelente bom humor - espalhará pela Terra nossas histórias feiosas e presto! - temo-las fortes e eternas como um jatobá. E pessoas morrendo para provar que são reais. A história deste Viajante, deste imbecil que virá, não passa de uma semente muito bem plantada em terreno extremamente fértil. A prova cabal que posso oferecer-te a respeito é o fato de a porta desta varanda estar aberta há sete meses e o único viajante que por ela adentrou, além de ti, foi Lady Clayborough, aproveitando-se da ausência de seu digníssimo esposo. Se o Viajante, se Aquele que Virá, for um indivíduo de fino espírito ou uma mulher bonita, pois que venha! Que seja até Mefisto, contanto que me divirta! - acrescentou, risonho.

- Não sei, não sei... - murmurei. Não me agradei disto. Entretanto, se já decorreu tanto tempo e nada...

- Pois é isto, meu caro, é uma afronta! - exclamou Cedric, irônico - Um Colecionador recusar-se a visitar um indivíduo que tem espalhados por seu Solar verdadeiros tesouros! É imperdoável! Há pessoas de tão pouca inteligência...

- Dar-lhe-ia de graça esta máscara indiana! - exclamei, mais à vontade. O dia em que isto for um tesouro, serei o Príncipe de Gales!

- Fico feliz em saber que estás mais calmo.

- Talvez. Pretendo apenas tentar esquecer meus pressentimentos. - Isso é fácil. Quando vires a mesa que se prepara para nosso almoço, não terás em ti espaço para...Aquele que Virá!

- Pare, Cedric, eu lhe peço. Respeite minhas convicções!

- Ouço e obedeço, Fidalgo.

Curvou-se como um mouro. Nesse instante, o sério Alfred chamou-nos para a refeição. De braço dado com o Lord, segui conversando pelos corredores do Solar. Meu coração, entretanto, permanecia inquieto.

Semanas se passaram. Minha inquietação quase desapareceu e teria findado se não houvesse o espectro da porta aberta na varanda e da candeia que brilhava, impassível, noites a fio. Cedric adentrou de tal maneira a brincadeira a ponto de ordenar a Alfred que pendurasse outra candeia no portão de entrada do Solar, a fim de que, segundo suas palavras, “o pobre Viajante, coitado, desconhecedor do caminho, não tropece ou se perca nos jardins”. Por entre nossas cavalgadas, saraus, leituras, audições - Cedric era um virtuose do violino -, jogos de bridge ou cricket, o Lord sempre fazia menção ao Colecionador, rindo-se abertamente de minha apreensão.

Certa noite, uma ventania tenebrosa trouxe consigo uma forte tempestade. A chuva caía em torrentes, o vento assobiava nos caixilhos das janelas, relâmpagos rasgavam o céu carregado de nuvens. Confortavelmente recostados em nossas poltronas, na biblioteca, observávamos a intempérie. Cedric remexia seus anéis, como seu costume; um seu bocejo longo quebrava o silêncio, de vez em quando. Eu, entretanto, me deixava levar pelo espetáculo, sentia-me um primitivo, minha alma agitava-se deliciosamente a cada descarga elétrica. Tinha ímpetos de curvar-me ao som dos trovões, de dançar num ritual louco e solene em honra à grande Gaia. Meu Lord observava-me como um tutor estóico observaria seu pupilo poeta. Levantei-me da poltrona, excitado, e aproximei-me da janela, a fim de integrar-me ao ambiente; relanceei um olhar à varanda. Recuei, porém, com um grito, cheio de involuntário terror. Cedric ergueu-se de um salto e susteve-me nos braços:

- Com mil demônios! - exclamou - O que tens, homem? Fala!

Não conseguia falar. Tremia, suava frio. Arquejante, tartamudeei:

- Eu... eu vi... eu o vi... ele... ele...

- Ele quem, homem?

- Não sei... alguém... alguém de capuz... pegou a candeia... na varanda... - e, virando-me para Cedric, exclamei, cravando meus dedos em seus ombros:

- É ele! É o Viajante! É o que virá! É a desgraça! A peste! Deus nos ajude!

- Que Viajante? Que tolice! É Alfred!

- Alfred não passearia por aí de capuz nesta tempestade e nem seria capaz de desobedecer-te! - exclamei, desvairado - É aquele de quem duvidaste!!! Ele veio!

Cedric esboçou uma resposta, mas foi interrompido por sons de passos, calmos e largos, vindos do corredor. Encostei-me à parede, aterrado. Meu amigo ficou parado no meio do cômodo, braços cruzados; disse-me:

- Com que então é o Viajante, einh? Pois recebamo-lo como cavalheiros que somos.

Mal terminou de dizer tais palavras, o desconhecido cruzou os umbrais da biblioteca. Confesso que certo alívio encheu-me o peito quando o vi, já que não se parecia com as figuras horrendas que povoavam meus pesadelos. Era um homem cuja idade estimável seria entre trinta e cinco e quarenta anos; estatura mediana. Muito magro, trajava negro, mas não se podia entrever o corte de suas roupas, pois permanecia obstinadamente envolto em manto um pouco gasto, também negro. Trazia uma bengala tosca e escura, além de um alforje surrado. O capuz de seu manto não permitia que víssemos nitidamente suas feições, mas perecia esconder um rosto - perdoem-me o termo - normal. Caminhou até a grande mesa de estudos e, depois de empurrar para o lado os livros e a papelada que compreendiam meus estudos e os de Cedric, depôs ali, vagarosamente, a candeia apagada. Depois, virando-se em nossa direção, perguntou, com voz grave e pausada:

- Lord Cedric Hommersfield?

Meu amigo assentiu. O desconhecido, então, desceu lentamente o capuz que lhe ocultava o rosto e disse a meu amigo:

- Eu sou o Viajante, Aquele que um dia viria. Eis-me, pois, aqui, em atenção à sua hospitalidade, Milord.

Cedric permaneceu sereno. Respondeu, com seu habitual sorriso cínico:

- Pois que tardou! Houvesse eu sofrido algum prejuízo material por ter deixado minha porta aberta, não hesitaria em atribuir ao senhor o ressarcimento. E, conhecido o senhor como o Colecionador, estranho o fato de ter-se demorado tanto a visitar o local que lhe pareceria o Paraíso!

O desconhecido não respondeu de imediato. Fitava Cedric; seus gestos lentos e sua respiração profunda agoniavam-me. Ele disse, por fim:

- Não necessito apressar-me. O tempo, para mim, é irrelevante. Não planejo findar minha coleção tão cedo; posso dispor, para isso, digamos...da eternidade.

Fiquei gelado. Aquelas palavras deram aos meus pressentimentos antigos a força de que necessitavam. Hommersfield, entretanto, divertia-se, como de costume. Ofereceu uma das poltronas ao visitante:

- O senhor é deveras espirituoso. Gosto disso! Mas, sem cerimônia, sente-se.

O indivíduo sentou-se na poltrona bem em frente a nós. Recusou o xerez que Cedric lhe estendia, bem como as cigarrilhas. Não se recostara; permanecia com o tronco ereto, as mãos pousadas sobre o castão de sua bengala, olhar fixo em nós. Percebi, confuso, que suas roupas estavam totalmente enxutas, a despeito do temporal que se enfurecia a cada momento. Ele não trazia guarda-chuva.

- Bem, senhor, já que me concedeu a honra de ter aceitado minha hospitalidade neste meu humilde sanctum sanctorum, creio que seria interessante poder saber-lhe o nome. - disse meu amigo, remexendo displicentemente seus anéis.

- Não tenho nome - respondeu o desconhecido, frisando bem as palavras - Não tenho procedência. Sou apenas Aquele que Virá, o Viajante, o Colecionador.

A resposta perturbou-me, confesso. Tudo aquilo era muito real, muito fiel; quis crer ser algum chiste de amigos de Cedric, mas, quais, se ninguém sabia daquela história com riqueza de detalhes? Alfred nunca faria coisa deste tipo com seu senhor. E aquele indivíduo extremamente pálido, de faces encovadas, não se parecia em nada com o tipo de pessoas que formava a roda de amigos de Cedric e, muito menos, com Alfred. Tinha o aspecto selvagem, exótico, assustador por ser impenetrável: os cabelos, escuros e grossos, estavam presos, puxados para trás; os olhos, muito negros, penetrantes, eram emoldurados por espessas sobrancelhas que se encontravam; o nariz, aquilino; os lábios, de traços finos e duros. O semblante era sempre fechado, carregado; seu olhar parecia devassar-nos a alma, ler nossa mente, controlar nossas forças. Era indiferente ao cinismo de Cedric e seus olhos tinham um brilho estranho, feroz, cruel, quando se dirigiam a ele. Ignorava-me. Meu Lord, todavia, não se perturbava com nada:

- Não tem nome, einh? Pois creio que nos daremos muito bem; o senhor é um tipo excêntrico, também assim me considero. Somente espero que isto não incomode meu dileto amigo, que se obstina em calar-se - acrescentou, olhando-me.

Mal pude esboçar uma resposta. O desconhecido permanecia silente. A tempestade redobrara a sua fúria, e o silêncio reinante na biblioteca tornava-se opressor; Cedric começou a aborrecer-se. Voltou a encetar conversa:

- Senhor Colecionador, amanhã terá oportunidade de conhecer minhas preciosidades. Meu pai era dado à arte da coleção, igualmente; passou a vida acumulando dinheiro e tesouros, agradeço-o. Creio que faremos bons negócios.

- Eu faço somente bons negócios, Milord; assim o será, aqui. Milord enriquecerá minha coleção, sem dúvida...

Um sorriso mau brotou dos lábios do Viajante. Percebi que Cedric, dali em diante, poderia estar correndo sério perigo.

O relógio bateu duas horas; a tempestade amenizara. O silêncio persistia, embalado pelo leve e monótono som dos pingos de chuva batendo nos caixilhos das janelas. Meu amigo padecia de tédio e olhava-me irritado, pois eu não conseguia conversar. Um turbilhão de emoções transtornava-me, meu cérebro fervilhava. O Colecionador olhava-nos, fixamente, persistentemente.

- Bem, creio que já é um tanto tarde; recolhermo-nos seria o melhor a fazer, por ora. - sugeriu Cedric. - Senhor Viajante, mandarei meu criado preparar-lhe o quarto de hóspedes; infelizmente, não disponho de dependências próprias para colecionadores incógnitos - ironizou, sorridente.

- Se não for desagradável a Milord, preferiria permanecer na biblioteca. - retrucou o desconhecido.

Cedric sorriu e disse:

- Oh, com certeza! Esqueci-me de que trato com um excêntrico. Providenciarei, então, que se lhe arrume o divã.

- Não será preciso.

O Lord alçou a sobrancelha. Cruzando os braços, perguntou, firme: - O senhor se ri de mim, ou crê-me tolo?

O desconhecido tornou a dar o mesmo sorriso mau e, fitando meu amigo, respondeu, muito calmo:

- Esta poltrona é o quanto me basta; isto é, enquanto não fechamos nossos negócios, Milord. Em questões de conforto, sou indiferente; por outro lado, em questões de minha coleção, Milord terá a oportunidade de perceber o quanto sou... exigente. Tenham uma boa noite.

Permaneceu sentado na poltrona da mesma forma como fizera ao chegar e baixou o capuz sobre o rosto. Hommersfield não gostou da resposta. Com que então aquele imbecil surgido sabe-se de onde se arvorava a dar-lhe ordens como se Cedric fora um seu serviçal? Mas, a fim de evitar atritos desnecessários, retribuiu o boa-noite e retirou-se, acompanhado de mim. Não permitiu, entretanto, que me deitasse; puxou-me para o lado e obrigou-me a sentar no divã de meu quarto:

- Muito louvável tua atitude, meu amigo. Deu àquele imbecil condições bastantes para tratar-me como um reles criado. O que há contigo?

- Não me sinto bem, Cedric. Estou confuso e assustado. Este indivíduo me inspira temor e desconfiança. Desculpe se te enervei ou causei ridículo.

Apoiei minha cabeça entre as mãos, esgotado. Meus nervos estavam abalados; sentia-me cansado, como se houvesse trabalhado ininterruptamente em tarefa braçal. Meu amigo sentou-se a meu lado, pousou a mão em meu ombro e disse:

- Preocupas-te à toa, caríssimo. Tua confusão deriva apenas do fato de tal indivíduo ter surgido justamente quando teu cérebro agitava-se em torvelinho de emoções romanticamente primitivas. Tudo não passou de fantasia mórbida que habilmente construíste. Se houvesse lua, uma partida de bridge e cigarrilhas acesas, o homem que está na biblioteca seria para ti apenas o que é para mim: um imbecil ridículo.

- Não estou tão certo disso. Notaste como te olha sinistramente? Há algo de mau naquele sorriso, Cedric, ouça-me.

- Tolice! Mas, já que nosso amigo te incomoda desta forma, livrar-me-ei dele amanhã. Será fácil, tu o verás: dar-lhe-ei qualquer objeto menos valioso de minha coleção e ele irá embora, servil e satisfeito, certo de seu bom negócio e orgulhoso com o sucesso de sua aparência de mau. Nada há para que temas.

- Assim espero, meu caro. Peço a Deus que meus temores sejam infundados. - murmurei, por entre um suspiro.

- Não será preciso Deus para perceber isto, ó Fidalgo. Agora durma, estás horrível. Esqueça aquele idiota da biblioteca; não passa de um palhaço. Se necessitares de algo, chama. Boa noite.

Cedric deixou meu quarto. Minha cabeça doía, meus músculos estavam tensos. A figura daquele indivíduo mórbido não saía de meu pensamento. Deitei-me, mas não consegui relaxar. Quando adormecia, cruéis pesadelos atormentavam-me. Foi uma noite horrível.

Acordei muito tarde no dia seguinte; passava da uma hora. Um cansaço sem fim tornava meus movimentos lentos, pesados. Chamei Alfred diversas vezes; estranhei o fato de ele não aparecer com meu desjejum. Embrulhei-me em meu robe de chambre e saí. Encontrei a arrumadeira no salão onde costumávamos fazer as refeições. Parecia assustada. Perguntei-lhe por Alfred; disse não saber onde ele estava desde a noite anterior. Queria servir-me o café; recusei. Tomei apenas um gole de chá.

- Onde está Cedric, Marge? - perguntei.

- Milord? Está na biblioteca, senhor, com aquele indivíduo horrível, desde manhã cedo - respondeu ela, tensa. E acrescentou, baixando a voz: - Fique com Milord, senhor, eu lhe imploro! Não o deixe mais tempo sozinho com o Viajante, pelo amor de Deus!

- Mas, por que, Marge? O que pode acontecer a Cedric? - retruquei, aparentando calma - que não tinha.

- Porque senão ficaremos sem ele! - respondeu a moça, trêmula.

Assegurei-lhe que acompanharia o Lord todo o tempo que pudesse e pedi que continuasse seu serviço em paz. Ela se retirou e eu me dirigi à biblioteca. Ouvi vozes; bati na porta e entrei.

- Ora, vivas! Nosso Fidalgo aparece, finalmente! - exclamou Cedric - Venha, junta-te a nosso agradável colóquio. Toma uma cigarrilha. Sabes tu, meu caro amigo, que nunca imaginei ser tão comunicativo? Pois é verdade, já que passei boa parte da manhã conversando com nosso hóspede, falando por mim e por ele. Que te parece?

Estranhei a feroz ironia de Cedric. Aparentava irritação a custo contida; o desconhecido, porém, permanecia silente, imóvel, olhando-nos. Tentei amenizar a situação:

- E então, senhores? Já fecharam o negócio de coleções?

O Viajante fixou seus olhos em Cedric, e disse, pausadamente:

- Milord ainda não me concedeu tal honra.

- Estava à tua espera, meu caro. - cortou o Lord, sorrindo friamente - Gostaria de contar com teu parecer. Te importas?

- Absolutamente. Que tal se tratássemos disso logo?

Queria que tudo se resolvesse o mais rápido possível para que o Viajante fosse embora e nossa vida voltasse ao normal. Passamos para uma vasta sala contígua à biblioteca, onde jaziam as antigüidades. Era a parte do Solar que mais me agradava, e onde me deixava ficar, absorto, horas a fio, estudando os objetos, adentrando outras épocas, voltando no tempo. Percebi que Cedric aborrecia-se em deixar aquele indivíduo entrar ali, e que este pouco se importava com isso, encerrado em seu teimoso mutismo.

Lord Hommersfield foi exibindo ao Colecionador diversos objetos - de menor valor, como havia dito anteriormente - a fim de desembaraçar-se dele. O indivíduo examinou todos eles de forma fria, quase indiferente, e sempre mudo. Passeou pelo aposento, remexeu alguns colares, observou alguns vasos, abriu algumas caixas de laca chinesa e se deteve, por fim, em frente à horrorosa máscara indiana.

- Para afugentar maus espíritos, não é mesmo, Milord? - perguntou ele, saindo finalmente de seu obstinado silêncio.

- Assim se tem dito - respondeu Cedric, seco.

- Objeto inútil... - disse o Colecionador, dirigindo a meu amigo seu sorriso mau.

Cedric não respondeu. Remexia os anéis ininterruptamente, com o cenho franzido. O que teria causado a irritação de meu amigo? Teria surgido entre ele e o Viajante alguma questão que eu desconhecia, pelo fato da ausência, durante o transcorrer da manhã? Seria o desprezo com que o Colecionador olhava seus caros tesouros? Ou mera relutância em ter que se desfazer de algum objeto? Pensei, igualmente, ser sua raiva determinada pela própria presença daquele homem sinistro em sua casa, cuja existência fora durante muito tempo a melhor piada que meu Lord ouvira. Parado no meio do amplo aposento abarrotado de História, com as mãos apoiadas em sua tosca bengala, o desconhecido fitava-nos opressivamente. O Lord interpelou-o:

- Pois então? Não se decidiu por nenhum?

- Milord possui, deveras, algo que me interessa amiúde. Não está, entretanto, disposto ainda a cedê-lo a mim. Quando for o tempo, então, nosso negócio estará concluso, certamente. Por ora, não.

- Hei de assegurar-lhe novamente, senhor, de que não lhe cederei coisa alguma. Haverá de pagar qualquer preço por aquilo que quiser; não sou benfeitor e o senhor não é o tipo de indivíduo que mereça doações. - replicou Cedric, irritado.

- Milord, não seria de boa política retomarmos o assunto tratado por nós durante a manhã. Apenas reitero o que disse: a hospitalidade me foi oferecida voluntariamente por Milord; dela me aproveitarei. E aceitarei, para minha coleção, apenas aquilo que desejo, e que Milord haverá de ceder-me.

- Eu sou o dono deste Solar! É minha propriedade, são meus objetos! Eu decido quem fica em meus domínios. Proponho-me a ceder algo meu quando e a quem bem entender! E não será um qualquer mudo e maneiroso que regrará minhas atitudes! - exclamou meu amigo, exaltado. Nunca o vira assim, antes.

O desconhecido permaneceu parado no meio do cômodo. Não esboçou reação; apenas disse, muito seguro:

- Se aqui cheguei, foi porque fui chamado; se entrei, por ter sido convidado. Não me incomodo se não ouviu os conselhos - por sinal inúmeros - que lhe foram dados, Milord. Asseguro-lhe, apenas, de que se foi seu livre arbítrio que o levou a chamar-me, será o meu que me determinará partir.

Tendo dito isto, retirou-se lentamente, retornando à biblioteca. Percebi que mancava discretamente. Cedric, lívido, trêmulo, agarrava-se ao espaldar de uma cadeira, fincando-lhe os dedos. Aproximei-me dele, a fim de falar-lhe, acalmar-lhe; antes, porém, que eu pudesse articular palavra, virou-se bruscamente e atravessou a largas e duras passadas o cômodo, precipitando-se violentamente na biblioteca. Segui-o, preocupado. Cedric aproximou-se do Viajante, que permanecia calmamente sentado na mesma poltrona onde estivera na noite anterior, e segurou-lhe o braço com força, obrigando-o a erguer-se. Bradava:

- Não permito que adentre minha casa e me afronte desta maneira! Exijo o respeito que me deve! Se está aqui é porque o deixei entrar, e aqui ficará enquanto eu quiser! E não pense o senhor que sua encenação macabra seja capaz de assustar-me; para mim, o senhor não passa de um imbecil, de um aproveitador!

Tentei intervir, já que a situação tornava-se insustentável. Cedric, entretanto, afastou-me com um repelão. Continuava segurando o Viajante pelo braço, mas o indivíduo parecia indiferente. Olhando fixamente meu amigo, disse-lhe:

- Pouco me importo com aquilo que pensa de mim, Milord. Uma vez em sua casa, dela só sairei quando obtiver o que quero. Está no livro, está na lenda. Milord foi avisado; dar-me-á o que quero... querendo ou não.

- Ponha-se daqui para fora, ou o matarei! - ordenou Cedric, largando-lhe o braço e apontando porta da varanda.

O indivíduo não esboçou reação imediata. Cedric tinha os olhos fixos nos dele; encaravam-se ferozmente. O desconhecido, então, abriu um largo sorriso, maligno, monstruoso, diabólico, que chegava a desfigurar-lhe o rosto. Pousando a mão no ombro de meu Lord, disse-lhe em voz baixa, profunda, cava:

- Milord não me deseja em seu Solar, não é verdade? Pois me ponha para fora dele...se for capaz.

Cedric não esperou nem um instante. Ergueu as mãos a fim de segurar o infame pelo colarinho e arremessá-lo no corredor. Antes que o pudesse fazer, porém, ficou subitamente paralisado: o desconhecido segurara com força os ombros de Cedric e mergulhara seu olhar no dele. O Lord parecia hipnotizado, e palidez mortal assomou seu rosto. Corri em defesa de meu amigo; o olhar que me lançou então o sinistro Viajante explicou a reação de Cedric, gelando-me o sangue nas veias: eu vira a morte em seus olhos! Recuei, aterrado. O Colecionador soltou Cedric e disse-lhe:

- Não desperte minha ira, Milord. Não está preparado para aumentar meu acervo, mas dentre em breve estará. Ficarei nesta biblioteca até que venha me oferecer, por sua própria vontade, aquilo que desejo e que somente assim posso obter. E lembre-se, Lord Hommersfield: é inútil tentar expulsar-me; Milord o sabe. O Viajante, o Colecionador, Aquele que Virá, nunca deixa a residência onde foi aceito sem levar dali o objeto de sua coleção. É o anátema do qual tanto se riu, Milord, que agora assoma seus umbrais.

Cobriu sua cabeça com o capuz de seu manto e tornou a sentar-se, imóvel, as mãos muito brancas cruzadas sobre o castão tosco de sua bengala. Aterrorizado, arrastei Cedric, que permanecia parado, estático, no mesmo lugar, até a porta da biblioteca, a qual fechei com estrondo. Levei-o até a sala de banhos, sentei-o em uma cadeira que ali havia. Meu amigo não apresentava nenhuma reação. Embebi um lenço em água-de-colônia e coloquei-o sobre sua testa; friccionei seus pulsos com álcool. Inútil. Desesperado, segurei-o pelos ombros e pus-me a sacudi-lo violentamente, exclamando:

- Reaja, Cedric! Pelo amor de Deus, não sucumba! Não te deixes levar pelo Colecionador! Seja forte, meu amigo, reaja, eu te peço! Por Deus, reaja, homem!

Um pouco de cor reapareceu, aos poucos, no rosto de Cedric. Minutos depois ele endireitou o corpo, olhou em redor, procurou apoio. Cobriu a face com as mãos e disse, numa divagação:

- Não posso acreditar no que acabou de ocorrer...Não sou eu mesmo, ao que parece! Como pude deixar que aquele imbecil me dominasse, me subjugasse de forma tão vergonhosa?...Que absurdo!... - e completou, virando-se para mim, jogando longe o lenço que eu pusera em sua testa: - Meu caro, o que houve com este projeto humano que aqui vês? Teu Cedric não passa de um grande poltrão, eis o fato...

- Ele tem olhos de morte, Cedric. Tu não és covarde, ele é que não é humano! Vejo algo de terrível cada vez que se refere à sua coleção, ao seu acervo, às suas viagens...O Colecionador irá nos matar, Cedric! Nós somos as peças de sua coleção, não percebes? - exclamei, desesperado.

- Ora, não seja tolo! Ele é tão humano quanto nós! Isto é ridículo! É um ladrão esperto, isto sim! Tenta impressionar-nos com estas atitudes estranhas, inumanas em teu entender, a fim de obter o que desejar. Mas, se pensa o nosso amigo que cederei a seu cerco, está muito enganado. Lord Cedric Hommersfield não se curvará a qualquer um, seja humano ou besta! É este o jogo, então? Pois vamos a ele! Alea jacta est!

- Deixe de bravatas, Cedric. É perigoso demais brincar com estas coisas, tens a prova agora! Por que não aprendes? Fujamos! Deixemos tudo isto para trás. Salvemos nossas peles!

- Se é este o teu desejo, amigo, foge. Boa viagem. Eu permanecerei e lutarei até o final. Sou muito novo para desistir; uma tola superstição não me fará deixar meus bens. Meu Solar me é caro, meus objetos, as damas também. Esta foi a última vez que me irritei e sucumbi. O imbecil que fique na biblioteca; que vença o melhor.

- O que houve entre vocês esta manhã? - perguntei.

- Não quero mais falar sobre este assunto. - foi a resposta.

Calei-me. Ele acendeu uma cigarrilha para si e ofereceu-me outra. Fumamos em silêncio, quedos no fresco ambiente da sala de banhos, como se a fumaça das cigarrilhas selasse por nós, no ar, um pacto solene de união contra aquele entrincheirado na biblioteca. Não conseguia, porém, retirar de minha mente aquele olhar maligno, mortal.

- Onde está Alfred? - perguntou Cedric, retomando seu ar habitual.

- Não sei. A criada disse que ele desapareceu desde ontem à noite - respondi, admirando nossa súbita frieza.

- Com certeza evadiu-se, temendo o estranho. É, meu caro, estou bem amparado... Tanto pior! Olhe, Fidalgo, precisamos pelo menos de tomar um gole de café. Se fomos derrotados de forma tão fragorosa, com certeza foi em virtude do jejum. Reabilitemo-nos para que possamos vencer este Viajante; não o quero aqui atrapalhando meu sarau da próxima quinta-feira.

- Mas, Cedric, tens certeza de que... - comecei.

- Que queres tu, afinal? Que eu chame um detetive? Um padre? Um exorcista? Que compre um colar de flores de alho? Um ostensório bento? Francamente! - replicou meu Lord, contrariado.

Emudeci, enfiando as mãos nos bolsos do robe. Cedric chamou a criada. Ela não apareceu. Tocou mais forte a sineta usada para chamar a criadagem. Nada.

- O que há com os serviçais? Debandada geral?

Insistiu com a chamada. A criadagem do Solar, curiosamente, não era numerosa: era formada por Alfred, Marge, a cozinheira e o jardineiro. Uma lavadeira, que também servia como engomadeira, vinha ao Solar dia sim, dia não. Cedric preparava-se para ir atrás de seus serviçais quando Nelly, a cozinheira, excelente senhora, apareceu, aflita:

- Perdão, Milord, se demorei a atender a seu chamado. Ouvi quantas vezes Milord tocou, mas não pude vir mais rápido. Estou só na cozinha, e Edward está cuidando do jardim.

- Onde estão Alfred e Marge? - perguntou Cedric.

A criada, com as doces feições entristecidas, respondeu, baixando os olhos:

- Não sei, Milord. Alfred está desaparecido desde a tempestade de ontem; Marge estava comigo pela manhã, mas, depois que voltou do salão, onde disse que se encontrou com o senhor seu amigo, embrenhou-se no jardim e não voltou mais. Sinto medo, Milord. - acrescentou ela, torcendo uma das pontas do avental muito branco.

- Ora, não te preocupes, cara Nelly; não há motivo algum para temores. Peço-te apenas que apresses o almoço o máximo que puderes, já que morremos de fome. E lembra-te: ignora a biblioteca, não te ocupes do imbecil que lá está. Tudo não passa de uma grande tolice. Podes te retirar, Nelly.

A boa senhora seguiu pelo corredor, persignando-se. Meu amigo convidou-me a ir ao jardim, dizendo que o ar fresco nos faria bem. Concordei plenamente. Lá encontramos o velho Edward, o jardineiro, inconsolável:

- Olhe só, Milord, como alguém pode ser tão covarde? Olhe minhas margaridas, que plantei aqui, em volta do caminho que traz ao caramanchão, todas murchas, todas mortas...

- Mas, meu bom Edward, como podem ter morrido as margaridas se a chuva de ontem faria brotar até mesmo árvores em um deserto? - perguntou Cedric, retomando seu habitual sorriso.

- Não foi a chuva que matou minhas margaridas, Milord... Elas morreram foi de tristeza... de dor... Foi ele quem as matou, Milord, só de passar por elas, só de olhar para elas... Não adiantará replantá-las, pois morrerão. Todas elas. Todo o meu jardim querido será em breve um amontoado de folhas secas. Digo-lhe, Milord, metade de mim morrerá com este jardim... Com licença.

Retirou-se, lentamente, conversando com as flores como numa despedida. Cedric olhava-o, pensativo. O velho ainda virou-se para dizer:

- Sem faltar-lhe com o respeito, Milord, ainda lhe digo uma coisa a mais: enquanto este indivíduo estiver em seu Solar, nada permanecerá vivo ou viçoso. As plantas sentirão primeiro; o resto, perecerá depois.

Sumiu numa curva dos canteiros. Cedric virou-se para mim e exclamou, vivamente contrariado, abrindo os braços:

- Será possível que todos aqui enlouqueceram? Ou eu enlouqueci e ninguém quer me dizer? Desde quando uma coletânea de coincidências pode transtornar tanto a vida de um homem? Se eu soubesse que esta história me acarretaria tantos dissabores, eu a teria ignorado! E eu pensando que me divertiria! Pobre de ti, belo Cedric!

Atirou longe a ponta da cigarrilha. Abaixei-me e colhi uma das margaridas mortas. O velho jardineiro estava certo: a flor parecia haver definhado de pura tristeza. Agoniado, atirei-a no meio do canteiro. Notei, inclusive, que algumas folhas das árvores menores começavam a amarelar. Relanceei um olhar até a biblioteca; por entre as cortinas, o Viajante nos observava. Ao ver-me, contudo, retirou-se rapidamente. Comentei o fato com Cedric. Ele disse, simplesmente:

- Quero mais que ele vá aos infernos. Que morra na biblioteca! De lá, disse que não sairá. Pois bem! Lá ficará sem água, sem comida, sem nada. Quero ver se em três dias - no máximo - ele não pedirá socorro e nos deixará.

- Posso ser sincero contigo, Cedric? - perguntei.

- Deve. Que queres?

- Por que não dás logo a este homem aquilo que ele quer? Tu és extremamente rico; és Lord, és moço e és belo. Não necessitas de nada! Se perderes muito do que é teu, tuas amizades, tua inteligência sem par e teu título se encarregarão de reerguer-te. Eu mesmo me ofereço, neste caso, para ajudar-te em tudo. Entrega ao Viajante aquilo que quer e estará tudo findo.

- E pensas que já não cogitei disto? Mas, como dar àquele imbecil o que ele deseja se não diz o que é?

- Mas já perguntaste?

- Como não? Passei metade da manhã de hoje tentando arrancar dele o que coleciona e o que quer. É inútil, contudo. Apenas diz que tenho o que deseja e que eu lho darei no momento oportuno. Tendo em vista essa absurda teimosia, resolvi não lhe dar nada até que se resolva a deixar de agir infantilmente e me diga o que quer. Mas, chega disso, está me dando náuseas; vejamos se Nelly já serviu o almoço. Tenho a fome de um urso.

Segui-o, contrariado. Aquele silêncio do Viajante parecia-me ridículo e, ao mesmo tempo, perigoso. Como estava tentado a atribuir-lhe existência sobrenatural, comecei a entrever objetos mórbidos de coleção que ele poderia ter. Além disso, o fato de as flores terem morrido daquela forma, sendo que estavam maravilhosamente viçosas, e de as demais árvores estarem amarelando dava mais força às minhas conjecturas. Um frio percorreu a minha espinha; estaria aquele ente colecionando a vida de suas vítimas, educadamente chamadas de anfitriões? Guardaria ele nossas almas naquele alforje surrado, para depois juntá-las todas em uma só e revigorar-se em suas forças? Tornei a olhar a fachada do solar; a tonalidade mais escura das pedras e o dia tristemente nublado pareceram confirmar minha tese. Assustado, procurei recalcá-la nas profundezas de minha mente. Nunca a diria a Cedric.

- Estás muito calado, meu fidalgo. O que lhe vai à mente que não te permite falar? - perguntou o Lord, risonho - Por acaso articulas um modo de executar aquele que se apoderou indecentemente de minha biblioteca? Ou cogitas a respeito do que nos espera na cozinha?

- A segunda opção talvez seja a mais correta, amigo - respondi, encobrindo minhas preocupações - E que tal um joguinho de cricket, mais tarde?

- Não vejo nada melhor para fazermos, meu caro. E torno a repetir: três dias de sede e inanição corrigem qualquer engraçadinho.

O restante do dia transcorreu normalmente. Eu e meu amigo nos entregamos às nossas distrações e ocupações habituais, sempre nos esforçando para esquecer o que ocorria. Somente tivemos de alterar nosso lugar de fumar; despejados da biblioteca, passamos à varanda.

Três dias se passaram. Cedric parecia ausente; as distrações não faziam mais o efeito esperado. Também sentia emoção análoga; atormentava-me a idéia de que aquele homem fechado naquele cômodo por tanto tempo não havia manifestado fome, sede ou enfado. E tudo no Solar parecia triste: o jardim ficara com aparência de abandono, olvidando os esforços do bravo Edward; o solar transmitia uma sensação de lenta decadência e os pássaros já não cantavam com a mesma alegria. Até mesmo o salão onde ficavam as antigüidades já não parecia mais o mesmo; perdera o seu ar de repositório da História para se tornar apenas um depósito de trastes antigos. Cedric, por sua vez, ignorava tais acontecimentos, recusando-se me ouvir falar deles. Em verdade, creio que ele apenas se recusava a aceitá-los, irredutível em sua posição de cético, que se tornava absurda e ridícula em vista dos acontecimentos.

Na noite do terceiro dia, eu fumava calmamente na varanda, observando o céu pesado de nuvens, quando Cedric aproximou-se de mim, muito sério. Convidou-me a sentar no salão das antigüidades; queria conferenciar. Apaguei a cigarrilha e acompanhei-o. Depois de acomodados, ele disse:

- Meu caro, sou forçado a concordar que o Viajante é muito mais forte e inteligente do que pensei. Subestimei suas forças; confesso que errei. Peço-te que me acompanhes até a biblioteca; quero que me ajudes a ter com este indivíduo indesejável uma conferência civilizada e uma negociação inteligente, livre de velhacarias. Ele está atrasando minha vida; nunca cancelei um sarau e... nunca vi minha propriedade em abandono tão grande. Perdi dois empregados, que não consigo substituir; perdi minha alegria e minhas flores. Estou farto. Que achas?

- Excelente idéia, meu amigo. Vamos até lá e resolvamos este problema que está a me dar nos nervos, também.

Dirigimo-nos à biblioteca; hesitamos, porém, por questão de segundos, a abrir a porta. Cedric murmurou uma praga e adentrou o cômodo. O indivíduo estava sentado no mesmo lugar em que o deixáramos três dias atrás, e parecia esperar nossa chegada, pois baixara o capuz e olhava fixo em nossa direção.

Sentamo-nos nos mesmos lugares onde estivéramos na noite em que a tristeza adentrara nossos umbrais. Cedric encarou-o e disse, calmamente:

- Sou forçado a reconhecer que é indivíduo de fibra, senhor. Resistir todos esses dias é mesmo coisa de um homem singular. Bem, não vim aqui, entretanto, para elogiá-lo, mas sim para propor-lhe algo que será agradável a nós dois. É o seguinte: o senhor deseja algo meu, embora não especifique o que é; diz que eu, um dia, certamente, viria lhe oferecer. Pois bem; esse dia chegou. Venho aqui oferecer ao senhor Colecionador qualquer coisa que desejar de antigüidade ou modernidade existente nos salões desta casa. A princípio, tinha pensado em... fazer um abatimento de preço, mas isso seria um tanto quanto... mesquinho. Ofereço-lhe então aquilo que quiser retirar daqui, não farei objeções. Pode escolher. Assim, faremos nosso bom negócio e teremos a certeza de que não nos reveremos nunca mais, hipótese que agradará tanto a mim quanto ao senhor.

Percebi o quanto estava sendo difícil para Cedric sucumbir àquele de quem tanto rira e duvidara. O Viajante pareceu considerar a oferta por alguns instantes. Depois, dirigindo seus olhos negros para meu Lord, disse:

- Milord, percebo a sinceridade de suas palavras, apesar de serem custosas de serem ditas. A proposta é tentadora, confesso; seu Solar possui realmente tesouros que despertariam a cobiça de qualquer um que aqui viesse. Todavia, não se encontra em sua proposta aquilo que desejo. Milord não inclui entre as maravilhas que me ofereceu o objeto de minha coleção. Portanto, lamento não ser esta ainda a ocasião de fazermos nosso negócio.

Cedric alçou a sobrancelha, incrédulo. Percebi que se irritava paulatinamente e temi que a cena da vez anterior viesse a se repetir. Por isso, resolvi intrometer-me:

- Caro senhor, realmente não consigo entendê-lo, perdoe-me. Meu amigo lhe oferece qualquer preciosidade deste Solar e o senhor simplesmente despreza a oferta dessa forma? Que tipo de Colecionador é, enfim, que desdenha aquilo que todos dariam milhões para ter e que lhe é oferecido com tanta abnegação? Creio que seja o senhor então colecionador de paciências ou sanidades humanas, já que sua atitude suscita a perda de ambas!

- Não perca seu tempo, meu caro, já sei o que este senhor quer - atalhou Cedric, colérico - Ele deseja que eu lhe abra as portas de meu quarto e lhe deixe retirar de lá qualquer objeto, pois sabe que é ali onde guardo meus verdadeiros tesouros. Pois saiba o senhor que cada objeto daquele faz parte de mim; não me separarei deles nem que tenha de suportar sua abominável companhia pelo resto de minha vida!

- Faça Milord aquilo que bem entender. - replicou o Viajante, com seu sorriso mau - Pouco me importo com aquilo que guarda em seus aposentos. Milord sabe que só sairei daqui quando obtiver aquilo que desejo; quando estiver apto a ceder-me, aqui estarei para receber.

- Mas como Lord Hommersfield poderá ceder-lhe aquilo que o senhor deseja se não diz o que é? Não somos adivinhos, nem paranormais; não lucramos nada com essa brincadeira de extremo mau gosto, nem mesmo o senhor. Portanto exorto-o, em nome do Lord, a dizer o que deseja a fim de que tudo isso possa se resolver da melhor forma possível! - falei, na esperança de que o Colecionador nos desse uma posição.

Ele virou-se para mim e respondeu:

- Senhor, infelizmente este assunto só poderá ser tratado entre mim e o Lord, visto que foi ele quem me convidou a vir ao seu Solar. E, quanto ao que quero, Milord sabe do que se trata; não quer, apenas, aceitar. Este contratempo poderia ter sido evitado de Milord tivesse dado crédito ao que lhe disseram. Se escolheu ser cético, não há nada que eu possa fazer. Está escrito; quem quiser ler, que leia... e creia.

Cedric estava de costas para o Viajante e amassava, ferozmente, o lenço de cambraia que tirara do bolso de seu paletó. Profunda cólera o tomava; continha-se a custo. Por fim, dominando-se, tornou a dirigir-se ao Colecionador:

- Com que então o senhor prefere manter a situação nestes termos? Condena-lo-ei, então, a passar o resto da vida nesta biblioteca, mas não me curvarei tão facilmente às suas pretensões.

- Nem que espere a eternidade, Milord, mas terei o que quero. Será sempre assim, como sempre tem sido. Não há como impedir, e o senhor não será exceção.

Cedric deixou a biblioteca, furioso. Levantei-me com o firme propósito de esmurrar aquele sujeito; suas palavras, entretanto, cortaram cerce minhas intenções:

- Não adianta tentar me esmurrar ou expulsar, senhor. Sabe melhor do que Milord seu amigo que é inútil. Conhece-me o suficiente para ter certeza de que o que digo é a pura verdade. Sei que teme por seu grande amigo, mas, que posso fazer? - sorriu cinicamente - Apenas atendi a seu chamado. Que isso lhe sirva de lição... e de exemplo, senhor.

Entrevi o mesmo olhar de morte que o Colecionador me dirigia por debaixo de seu capuz, bem como seu abjeto sorriso mau. Recuei, e saí correndo da biblioteca, assolado por medo terrível, enquanto maldosa gargalhada ecoava pelos corredores. Fui ao encalço de Cedric. Encontrei-o na sala de jantar, em total desalinho, atirando contra as paredes tudo o que lhe chegasse ao alcance das mãos. Havia ingerido mais da metade de uma garrafa de xerez, bebendo pelo gargalo; estava à beira da total histeria. Gritava, brandindo os punhos cerrados:

- Com mil demônios! Que fiz eu para merecer tal provação? Foste tu, meu pai, que dos infernos enviou este ser asqueroso para me destruir? Que miserável covarde eu sou, que não tem coragem de pôr as mãos nesse desgraçado, jogá-lo porta afora e arrastá-lo por aquela estrada, esfolando-o vivo? Que força absurda é essa que me impede de matá-lo, expulsá-lo, evitá-lo? Por que tudo isso? Por quê?

Tentei aproximar-me dele, a fim de acalmá-lo. Ele, porém, me repeliu:

- Não me toques! Deixa-me em paz, eu e minha abjeta covardia! De agora em diante não passarei de um serviçal, de um escravo daquele que ocupa minha querida biblioteca! Arrojar-me-ei ao chão para que ele não suje seus sapatos quando caminhar, segurarei as pontas de sua capa surrada quando ele se transformar no dono absoluto de meu Solar! Ah, Cedric, como pudeste descer tão baixo, tão baixo, tão baixo...

Sentou-se no chão, a um canto, chorando convulsivamente. Sentei-me a seu lado, oferecendo minha solidariedade. Ele enxugou as lágrimas e olhou-me. Só então percebi que elas não se referiam, em verdade, à sua pretensa vergonha. Ele havia entendido o desejo do Colecionador. Profunda dor tomou conta de minha alma; meu melhor amigo - talvez o único - era vítima de suas próprias mãos.

- Agora me explique o porque disso, meu Fidalgo - disse Cedric, passando a mão em seus cabelos, puxando-os para trás - Por que esta intransigência? Todos no mundo têm que ser exatamente iguais? Será que nem neste campo pode-se ter escolha própria? Quem queimou a bandeira da liberdade? Há tantos céticos pelo mundo, tantos incrédulos, por que eu terei de pagar por todos eles? Que têm de melhor do que eu? Einh? Responde! Tu sabes?

- Não quero ser inconveniente, meu caro amigo, mas uma coisa é certa: tu podes não ser o único cético no mundo, mas, com certeza, és de todos o mais debochado. Talvez seja isso... Como posso saber? - respondi, sufocando um soluço. O que Cedric precisava era de apoio, não de mais desespero.

Um sorriso tristemente cínico surgiu em seus lábios. Um suspiro escapou de seu peito; levantou-se e, dirigindo-se a mim, disse:

- Bem, meu caro, é lamentável... mas é isto. Terei de aturar a presença do Colecionador em minha casa por muito tempo, pois não lhe darei, tão cedo, aquilo que quer. Não estou disposto a sucumbir. Vamos, levanta-te! Terás teu Cedric inteiro e ativo a incomodar-te por muitos anos, com certeza! Se o Colecionador tem a eternidade para esperar, pois que espere!

Como explicar o que me ia ao peito? Sabia que toda aquela súbita euforia de Cedric não passava de encenação; não resistiria por muito tempo à presença incômoda daquele indivíduo da biblioteca. Era à custa de imenso esforço que recalcava minha tristeza; revoltava-me com aquela situação. Diabos, por que ele não me dera ouvidos, e aos demais que o aconselharam? Maldito destino que lhe pusera aquele maldito livro nas mãos!

- Não te entristeças por minha causa, amigo. Continuo o mesmo incrédulo de sempre. Aquele que está na biblioteca é, para mim, apenas um mero assassino; confesso, contudo, que seus métodos são do arco-da-velha... Quem o terá mandado? Achas, ó Fidalgo, que somente por causa deste objeto esdrúxulo de coleção eu começarei a acreditar em Deus, Diabo, Fadas, Bruxas, Anjos, Santos e demais seres além da imaginação? Pois que não; nego-os até o fim, nem que seja só para teimar. E outra coisa: será a cura total para o meu tédio. Mais cedo ou mais tarde ele chegaria, imenso, intransponível... Este fato serviu apenas para evitar que tal viesse a me acontecer; agradeço-o, em verdade.

Permaneci calado. Era já alta madrugada; o silêncio, total. Cedric tomou mais um gole de xerez e me estendeu a garrafa; tomei um grande gole, também. Devolvi-lhe a garrafa, que ele pôs sobre a mesa. Falou-me:

- Vamos dormir, meu caro. Ou tentar, pelo menos...Que estrago eu fiz aqui, einh? Idiota infantil! Como se isso...

Interrompeu-se bruscamente. Seguiu para o quarto; acompanhei-o. Já à porta, ele me disse:

- Meu grande amigo, o único que verdadeiramente possuo, é obrigação minha dizer-te isso: não te prendas por minha causa. Esta desgraça, este anátema é apenas meu; proíbo-te de te acabares comigo. Assim, se quiseres ir, vai. Serei grato a ti até o último momento. É inaceitável que pagues comigo por meus erros - se é que os cometi. Volta a Londres. Só te peço uma coisa: não te esqueças nunca deste teu amigo Cedric Hommersfield...

- Seria indigno de minha parte abandonar-te logo agora. Ficarei até o fim.

Abraçamo-nos, comovidos. Ele se recolheu, mas eu me deixei ficar parado no corredor. Uma idéia louca cruzou-me o cérebro. Cedric era mais novo do que eu, era belo, mais apegado à vida. Como ele mesmo costumava dizer quando éramos acadêmicos, eu era seu lado escuro; nunca tive o mesmo amor pela existência que ele, e era melancólico por natureza, muito embora me esforçasse para emendar-me. Resoluto, dirigi-me à biblioteca e, sem delongas, falei ao Viajante:

- Senhor, já é de meu conhecimento o objeto de sua coleção, de seu “acervo maldito”, como diz o livro. Pois bem; seria a maior das crueldades arrancar de Cedric aquilo que ele mais tem em conta, apesar de suas constantes queixas de tédio. Assim sendo, ofereço-me para integrar, em seu lugar, a sua horrenda coleção.

- É um belo gesto, senhor, mas absolutamente inútil. Apenas aquele que me chama é alvo de meus interesses. Sei da amizade que tem pelo Lord; tenha a consciência tranqüila, contudo. Ele perece apenas por sua própria leviandade. Mas, se o senhor também desejar pertencer ao meu acervo, basta convidar-me para uma...visita amigável.

Calou-se. Aquilo era despedir-me. Revoltado com seu cinismo fácil, dirigi-me à varanda, embrenhei-me no jardim. Através do pálido luar que se infiltrava por entre as muitas nuvens que cobriam o céu, pude perceber o aumento da desolação ali reinante. As árvores tinham os galhos quase nus; não restava sequer uma flor. Arrasado, retornei ao meu quarto, recostei-me no divã e passei o resto da noite em claro, fumando, enquanto ouvia os sofridos soluços que vinham do quarto ao lado.

Quantos dias se passaram depois desta noite não me é possível precisar. As horas pareciam arrastar-se, de forma cruel e cínica, como se quisessem testar até onde chegavam nossos limites. O Solar, o belo edifício onde meu Lord era senhor absoluto e apaixonado, nada conservava de seu antigo esplendor: tinha as salas abandonadas, entristecidas, empoeiradas; as antigüidades, as pratarias, os objetos de arte, tudo jazia melancolicamente em seu lugar, cobertos de pó e de teias de aranha. Do jardim nada mais restara além dos troncos secos das árvores. Estávamos completamente sós; Nelly não mais foi vista desde o dia em que falamos com o Colecionador pela última vez, e o bom e velho Edward deixou-se acabar juntamente com seu jardim.

Cedric também se permitia acabar, deixando seu ânimo esvair-se como areia de ampulheta. Em vão tentava eu trazer-lhe um pouco de paz ou distração; apenas me olhava e sorria, um sorriso que traduzia toda a ironia da situação em que se encontrava. Persistia, porém, em adiar o máximo possível a hora em que entregaria, com suas próprias mãos, sua alma ao Colecionador. Uma luta sem igual travava-se em seu interior: de um lado, a vã esperança de que o Viajante desistisse de seu propósito; de outro, a realidade inexorável que demonstrava ser aquela procrastinação uma perda de tempo.

Certa manhã, Cedric entrou em meu quarto. Estava muito pálido, trêmulo, mas, de certa forma, controlado. Caminhou em minha direção e disse, comovido:

- Despeço-me de ti, ó Fidalgo. Não posso suportar mais esta situação, é inútil esperar. Que tudo se resolva e acabe; já é hora - permaneceu algum tempo de olhos baixos e, com um suspiro, fitou-me e murmurou:

- Adeus, meu amigo.

Não pude conter o pranto. Abraçamo-nos fortemente. Pousando a mão em seu ombro, falei:

- Sei que não acreditas, mas... que Deus possa salvar-te, meu amigo, e livrar-te desta maldição. É só o que tenho pedido, e só o que desejo.

Um sorriso triste, amargo, perpassou seus lábios. Era clara em seus olhos a dor que sentia; o que fazer, contudo, se era inevitável?...

- Posso acompanhar-te até lá? - perguntei.

- Se quiseres... - respondeu, lacônico.

Quando encontramos o maldito Colecionador, ele já estava de pé no meio da biblioteca. Parecia saber de tudo o que se passara e conhecer a decisão de meu amigo.

-Pois bem, desgraçado, conseguiste vencer-me - disse-lhe Cedric, entre dentes. Pode levar o que quiseres; és mais forte do que eu, com mil demônios. Que se cumpra o que está escrito.

O Colecionador apanhou seu alforje, sua bengala e, baixando o capuz sobre o rosto, disse, lentamente, sem expressão:

- Que seja. Daqui a três dias virei buscar aquilo que me pertence.

Deu-nos as costas e saiu. Eu e Cedric, à janela, observamo-lo ir-se até que sumiu na curva da estradinha de chão. Revoltei-me enormemente, quis correr atrás do desgraçado e atacá-lo, destruí-lo. Cedric deteve-me, todavia; assenti. Sabíamos o quanto seria tolo. Acendeu uma cigarrilha e ofereceu-me outra, como seu costume; serviu, também, uma dose do inseparável xerez para si e outra para mim.

- Façamos nosso último brinde e fumemos nossa última cigarrilha juntos, meu caro Fidalgo londrino. É o melhor que fazemos.

Tomamos o xerez e quebramos os cálices, à russa.

- Ave, César! Os que vão morrer te saúdam! - exclamou Cedric, com um último e breve sorriso.

**********************


Lord Cedric Hommersfield faleceu três dias depois, vítima de uma febre cerebral que o atacou na tarde daquele mesmo dia. Antes de entrar em coma, porém, fez-me prometer que nunca mais retornaria ali, e que a primeira coisa que faria ao deixar o Solar seria queimar o abominável livro. Jurei que o faria, e a partir deste instante ele nem falou nem ouviu mais nada. O maldito Colecionador ficou parado, de pé, na curva da estradinha de chão, durante todo o último dia de vida de meu amigo, e dali se retirou, absolutamente indiferente ao olhar de profundo ódio que eu lhe lançava, apenas quando Cedric exalou seu último suspiro.

Eu mesmo sepultei meu amigo ao pé do tronco da imensa árvore, agora totalmente seca, que outrora formava o belo caramanchão do jardim, parte do Solar que tanto agradava a Cedric. Sem trazer nada comigo, a não ser o dinheiro necessário e um embrulho marrom, tomei o caminho, a pé, para a estação, a fim de voltar a Londres. Antes, porém, de embarcar, detive-me em um pequeno descampado e, certificando-me de que me encontrava só, ateei fogo ao embrulho marrom. Olhando as labaredas que lambiam o papel, agradeci ao Destino a missão que me fora concedida, por intermédio de Cedric: a de poder afastar, pelo poder do fogo, a humanidade da ameaça do Viajante, do Colecionador, Daquele que Virá.

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Nota: O texto em questão foi escrito pela Regina, que é a autora da Raven nas fics do Expresso Hogwarts. Quem quiser deixar algum comentário, pode fazer vistando o blog pessoal dela, ao clicar AQUI
O POÇO



- Deus, Deus, o que lhe fiz?

Levou as mãos à cabeça, aturdido. Há quantos dias vagava assim, a esmo, por aquele emaranhado de florestas e trilhas sem rumo certo? Perdera completamente a noção de tempo e espaço, desde que sofrera o atentado em Berlim. O grupo armado que o pegou tomou-lhe tudo o que possuía, até mesmo sua pasta com apontamentos científicos. Não o quiseram matar, porém; preferiram rodar com ele por vários e vários caminhos desconhecidos, mantendo-o ora faminto, ora com frio, ora sedento, divertindo-se à larga com seu tormento. Até que, finalmente, cansaram-se dele e abandonaram-no, roto e esfomeado, na orla de fechada floresta onde, à força e desnorteado, se embrenhou.

Todas essas recordações cruzaram sua mente num torvelinho. Cansado de andar - há horas que não parava -, deixou-se cair, exausto, ao pé de gigantesca árvore, cujas grossas e nodosas raízes tomavam curioso formato de trono. Desde que fora abandonado ali, alimentara-se tão somente de folhas, frutas e raízes, guiado por seus conhecimentos de botânica. Sentia-se fraco, enfurecido, o que o tornava incapaz de apreciar as belezas naturais que o cercavam. Apesar da luxuriante vegetação, do exuberante colorido das flores e do canto harmonioso dos pássaros, seu espírito somente conseguia se fixar em sua miserável condição. Ele, conhecido nos altos círculos científicos; pessoa respeitada por sua erudição, citada entre os mais destacados estudiosos de religião, magia e paranormalidade, miseravelmente perdido num fim-de-mundo qualquer, abandonado, esquecido, desviado de seus objetivos (depositara tanta fé em sua viagem a Berlim, onde encontraria um sábio capaz de guiá-lo direta e profundamente no caminho do verdadeiro saber, do primeiro conhecimento, da razão do Universo!), atacado por uma corja de imbecis que mal sabiam assinar seus próprios nomes!... Desejou morrer.

“Que mal causei às Potências para que me escorraçassem assim?” - tornou a pensar, confuso. “Logo eu, que tenho me dedicado tanto a conhecê-las, compreendê-las, alcançá-las! Deus, quanto mais estudo, menos compreendo...”.

Olhou ao seu redor. Arrancou algumas folhas de um arbusto próximo e pôs-se a mastigá-las, a contragosto. O sabor era péssimo, mas seus nutrientes poderiam sustentá-lo por horas. Sentiu que seu corpo se abandonava a pesada modorra, como sempre lhe ocorria em situações extremas. Não se deixou, contudo, abater; ergueu-se, lançou a cabeça para trás e, resoluto, caminhou para frente a passos firmes, pisando com os calcanhares.

“Bem, pelo menos não há sol” - confortou-se - “Posso caminhar com mais disposição”. Enrolara um cipó fino e flexível em torno dos pés, à guisa de sapatos, o que lhe tornava menos penoso o caminhar. Seguia por pequena, mas bem definida trilha - uma picada de caçador, talvez-, na esperança de encontrar algum acampamento, palhoça, ou um ermitão (que fosse!), alguém que pudesse informá-lo sobre onde estava e como chegar à cidade ou lugarejo mais próximo. Afinal, precisava retomar suas pesquisas e seus alunos na Universidade!

Animado pela continuidade da trilha, apressou o passo, abrindo caminho entre os galhos, cipós e lianas compridas. Ignorou seus ferimentos e até mesmo a chuva que começou a cair, permitindo-se apreciar o espetáculo da abundante vegetação. Calculou estar em meados da tarde; seu estômago o aguilhoava. Encontrou tubérculos, arrancou-os do chão com prazer, mas sentiu-se enojado com a lama que os recobria. Limpou um deles como pôde, em seus andrajos, e, quando se dispôs a abocanhá-lo, julgou ouvir o rumor de um curso d’água. Prosseguiu pela trilha que, alguns passos à frente, terminava na beira de um riacho. Feliz, banhou-se, saciou sua sede e lavou os legumes. Depois, completou sua prosaica refeição com alguns vegetais comestíveis e frutos que encontrou por ali. Teria até almoçado melhor, se pudesse ter cozido os ovos que achara em um ninho baixo; comê-los crus não lhe teria sido suportável.

“Feliz acaso encontrar este rio” - pensou, sorrindo, enquanto roía, distraído, seu tubérculo. - “Ele me levará, certamente, à civilização”. E, curiosamente, percebeu-se planejando suas próximas aulas, pensando na cerimônia do solstício de verão que se aproximava, no artigo infame que um seu crítico ousara publicar na revista científica e cujo teor era preciso rebater, e na surpresa de seus amigos quando, ao retornar, lhes narrasse toda essa absurda aventura. O trinado de certo pássaro raro, entretanto, arrancou-o de seus devaneios; levado por seu impulso de ornitólogo amador, levantou-se e pôs-se a procurar a direção de onde viera o canto, a fim de localizar e identificar a espécie correta de pássaro, o que não foi possível, porém, pois o pequeno animal misturou-se às folhagens e desapareceu. Desapontado, preparou-se para retornar ao local onde deixara os restos de sua refeição quando algo, por entre as árvores, lhe chamou a atenção. Parecia a ponta de um torreão medieval.

“Estou louco, ou aquilo que vejo é um torreão de castelo?” - pensou. E, coração aos saltos, galgou, desajeitadamente, a primeira árvore que viu. Dali pôde perceber, ainda bastante oculto pela vegetação, o perfil de uma construção de pedra que lhe pareceu bastante acolhedora. Saltou da árvore, atravessou o riacho e, quase correndo, seguiu em direção ao castelo.

“As Potências não me abandonaram!” - concluiu, com crescente júbilo, avançando pelo terreno que se tornara, subitamente, um pouco abrupto - “O pássaro foi um sinal, um aviso! Um elemental disfarçado, talvez. Creio que, daqui para frente, tudo será mais fácil para mim”.

A certa altura, sentiu que estava próximo. Emocionado, esquecido das dores, galgou última e pequena elevação que o separava do local que desejava ardentemente encontrar. Qual não foi sua surpresa, porém, ao verificar que o velho mosteiro - pois tal era, com efeito, a edificação que vira - não passava de um monturo de ruínas, decrépito, embolorado, cujas únicas partes habitáveis, ainda que precariamente, eram a torre que avistara dentre as folhagens e um pequeno galpão de pedras e ripas de madeira, próximo à torre! Deixando escapar uma risada seca, irônica, desabou, exausto, na relva, e nela descarregou toda a sua frustração, arrancando e esmagando entre os dedos toda folha ou inseto que lhe caíssem nas mãos. Teria ficado muito tempo ainda nesse estado se não fosse obrigado, pela chuva torrencial que repentinamente desabou, a procurar abrigo nas ruínas que agora odiava com todas as forças.

Anoitecia quando alcançou o lugar. Abrindo passagem por entre os escombros, procurou a entrada da torre, circundando-a, mas nada encontrou. Sem outra alternativa, penetrou no galpão, depois de empurrar penosamente a grande porta de madeira coberta de fungos. O local lhe pareceu inóspito à primeira vista, mas logo depois foi forçado a mudar de opinião: havia uma certa ordem em seu interior. Algumas goteiras pingavam aqui e ali, mas próximas aos cantos do aposento e incapazes de comprometê-lo totalmente. Um mobiliário simples, muito velho, mas ainda rígido, ocupava o centro do galpão: uma mesa enorme, retangular, de madeira grossa e escura, e um banco tosco, também de madeira, que acompanhava toda a extensão da mesa. Apesar da dor de cabeça e da frustração, não pôde deixar de imaginar meia dúzia de monges, envoltos em seus hábitos de lã grossa, sentados àquela mesa e tomando sua parca refeição, em silêncio. Passeando pelo aposento, encontrou, ao lado esquerdo, grande e profundo poço; estranhou a profusão de águas que nele havia - cristalinas, imóveis -, bem como sua beirada extremamente baixa. Cansado, sentou-se ali; parara de chover, e o ambiente tornara-se deliciosamente fresco, principalmente nas proximidades do poço. Por um buraco no telhado, um pouco à frente, se insinuava a tímida claridade da lua crescente.

Mais calmo, lançou um olhar à sua figura refletida na superfície da água; sentiu repulsa. Seu cabelo, desgrenhado, estava repleto de folhas e pequenos galhos; seu rosto, coberto com uma mistura de suor, lama e musgo; sua camisa, um emaranhado de trapos. Com um suspiro, mergulhou a cabeça na água fria.

- Onde estou, ó Senhor?...- murmurou, depois, confuso, olhando desolado para o poço e agitando tolamente suas águas com os dedos feridos - Aonde diabos eu vim parar? - repetiu.

Pensou ter enlouquecido. Pois não entrevira, nas leves ondulações da água, a nítida imagem de um mosteiro do século XIII, provavelmente situado à oeste da Europa, bem como de seus monges vestidos de negro? Levantou-se de um salto da beirada do poço e preparou-se para agitar-lhe as águas novamente quando ouviu o som de passos calmos, cadenciados, no escuro, bem atrás de si.

- Quem está aí? - gritou, munindo-se de uma grossa acha de madeira - Quem está aí, apareça! - tornou.

Os passos tornaram-se próximos e, depois, cessaram. De repente, o clarão de uma vela de sebo iluminou o local e deixou entrever uma elevada figura de negro - um monge, talvez.

- Eu sou o Senhor do Poço - disse a figura, em tom baixo e sem expressão - Estava à sua espera.

- Senhor do Poço? Ah, sim!... - exclamou o outro, medindo o monge de alto a baixo. Atirou longe o pedaço de madeira e disse, magoado: - Depois de tudo o que passei, ainda tenho a felicidade de encontrar um doido!...

- Não se deve julgar ninguém com leviandade, senhor. Talvez seja mais certo, então, que eu o julgue louco, por acreditar ter visões em superfícies líquidas... - disse o monge, sorrindo com malícia.

A alusão ao poço trouxe ao desabrigado repentina curiosidade. - Então sabe o que me aconteceu? - perguntou, de modo quase infantil - É verdade o que vi nas águas deste poço?

O outro assentiu, em silêncio. Depois, sentando-se à mesa e convidando o professor a fazer o mesmo, explicou:

- Como já lhe disse, sou o Senhor do Poço. Meu dever é guardá-lo e esperar cada peregrino a quem couber a honra de poder descobrir seus segredos. Considere-se homem único, senhor; a obtenção de conhecimento não é privilégio de qualquer alma.

- Está me dizendo que aquele tanque de água parada é uma fonte de conhecimento? - retrucou o outro, indignado, apontando para o poço - Acredita, então, meu caro, que pode me fazer de tolo somente porque estou perdido nesta maldita floresta? Acaso sabe com quem está falando? Não sou um idiota qualquer! Sou professor, um estudioso, graduado!...Ora, obter conhecimento! O que não tenho feito eu a vida inteira, senão buscá-lo? O que não tenho sacrificado, abandonado, gasto com este objetivo? Como ousa fazer troça de mim?

O monge sorriu.

- O senhor é, realmente, singular. Consegue encontrar piadas onde não as há....- suspirou - Que decepção! Esperei todo este tempo pela chegada do sábio peregrino, e tenho o desapontamento de encontrar um preconceituoso! Acreditava que, por tratar-se de um sábio, versado nas coisas do mundo e de fora dele, aceitaria como uma dádiva a possibilidade de abrirem-se-lhe todas as portas; enganei-me, com efeito.

Confuso, o professor observava curiosamente o Senhor do Poço, enquanto este perdia o olhar na direção da floresta. Não parecia, em verdade, louco; de forma alguma. Possuía, até mesmo, um brilho de rara inteligência em seus grandes olhos amendoados. Chamara-o sábio (e assim poderia se considerar, pensou o professor, tendo em vista tudo o que estudara e o quanto conhecia do mundo) e tratava-o com respeito, apesar da ironia inicial - justificável, porém. Relanceou o olhar para o local onde jazia o poço, e lembrou-se do que nele vira. Era seu dever acreditar em seus olhos, além de seus conhecimentos de magia forçarem-no a abandonar preconceitos. O monge percebeu seu olhar e encarou-o, como se esperasse alguma confissão de sua parte.

- Senhor... hã... monge - disse, em tom cordial, por entre um sorriso - , perdoe-me se o ofendi. Precisa entender meu estado de espírito. Estou perdido há um sem-número de dias, atordoado, sem qualquer esperança de retornar para casa e, de repente, tenho lançado em meu rosto todo o objetivo de minha vida justamente onde nunca esperava encontrar! Se for verdade - com todo o respeito - o que me diz e o que meus olhos me mostraram, nem sei o que dizer ou como agir! Se soubesse o quanto já estudei, os caminhos pelos quais já me aventurei, sempre tentando saciar meu desejo de saber!...Busquei em todas as filosofias, ciências, religiões, seitas, enfim, em qualquer ramo do saber as respostas para minhas infinitas dúvidas... e, apesar disso, sinto-me cada vez mais confuso, tão ignorante como quando comecei e, pior, com a sensação de correr em círculos! Mas, não consigo desistir; é uma maldição que carrego e que parece nunca chegar ao fim...

- Mas chegou - interrompeu o Senhor do Poço, que escutara com atenção - Finalmente pode obter suas respostas, saber o que desejar. Por mero acaso descobriu sozinho o mecanismo deste poço, mas está longe do acaso o fato de ter chegado até aqui.

Levantou-se e, pousando uma das mãos no ombro do professor, que fitava siderado as águas imóveis do poço, disse-lhe, apontando-as:

- Pergunte, e saberá.

Um sorriso perpassou os lábios do professor.

- O Poço dos Desejos? - perguntou.

- Daí provém esta lenda tola - explicou o Senhor do Poço, ligeiramente aborrecido - A mesquinhez dos pequenos desejos materiais distorceu o real objetivo deste poço. Bem, o que se poderia esperar? - completou, com desdém.

O professor permanecia olhando o poço. Agitou novamente as águas a repetiu a primeira pergunta que a ele fizera. Mais uma vez a imagem do mosteiro surgiu, com espantosa nitidez, como fora há séculos atrás. Havia nevado, e alguns monges com grossos hábitos andavam por ali, olhos fixos em seus breviários. A ondulação das águas foi cessando e, aos poucos, apagou-se a imagem. Viva emoção tomava conta do professor, que mal podia esperar para interrogar o poço acerca de suas mais profundas dúvidas. Sentia-se, porém, cansado e ainda confuso, o que poderia certamente atrapalhar seu discernimento.

- Tenho de questionar agora? - indagou.

- Absolutamente - respondeu o Senhor do Poço - Qualquer pressa será desnecessária, agora. Mas, o senhor deve estar exausto; seria preferível que descansasse primeiro. Tem fome?

- Muita.

- Lhe trarei de comer. Há uma nascente atrás deste galpão, próxima à horta. Se desejar lavar-se...

O professor agradeceu ao monge e dirigiu-se para lá. Livrou-se de toda a lama e restos de folhagens que recobriam seu corpo e encontrou, no lugar onde deixara seus trapos, um hábito de lã semelhante ao usado pelo Senhor do Poço. Sentiu, estranhamente, que poderia confiar nele, além de augurar bem de sua chegada àquele lugar. Foi surpreendido por delicioso cheiro de comida; retornou ao galpão e viu, sobre a mesa, pequeno pote de barro cozido, muito limpo, repleto de um caldo grosso, fumegante e aparentemente saboroso. Sentou-se e pôs-se a tomá-lo, deliciado.

- Legumes, verduras e um pouco de carne - enumerou o monge, sentando-se ao seu lado, um pouco afastado, porém - Não é a melhor das refeições, mas é muito nutritiva.

- Está ótima, obrigado. Agradeço-lhe, inclusive, pela veste; não suportava mais aqueles trapos.

- Não há o que agradecer, senhor professor. Meu dever é aguardar o peregrino; logo, devo estar sempre pronto para recebê-lo e suprir suas necessidades.

-Sempre viveu aqui?

-Sempre.

-Sozinho?

-Perfeitamente.

O professor arregalou os olhos.

- Por que o espanto, senhor? - perguntou o monge, com naturalidade - Em verdade, sozinhos estamos onde quer que nos encontremos.

A resposta do Senhor do Poço surpreendeu o professor. Prosseguiu:

- É, realmente, um monge?

- Sim... não... talvez - respondeu o Senhor do Poço, evasivamente, em meio a um estranho sorriso - A Ordem a quem pertenceu este mosteiro está desaparecida há muitos séculos, mas pode me considerar um monge, se tal lhe agradar.

Aquela resposta não conduzia a alugar algum. Serviu apenas para aumentar a curiosidade do professor, que voltou à carga:

- Disse-me, assim que cheguei, estar à minha espera. Como soube que eu viria? Melhor: como soube que viria agora?

O Senhor do Poço tornou a sorrir e apontou o buraco no telhado, por onde se coava o luar.

-Presságio? - inquiriu o outro, surpreso.

O monge assentiu. Depois, como se desejasse encerrar aquele assunto, perdeu-se na contemplação do luar, rosto apoiado nas mãos, cotovelos fincados na velha mesa. O professor, tendo encerrado sua refeição, observou atentamente o Senhor do Poço. Um homem comum, pensou, mas de extraordinária figura. Trazia os cabelos negros bem curtos, penteados para trás; tinha a pele clara, quase pálida. Seus grandes olhos eram verdes; os lábios, embora finos, possuíam uma curva sensual, mas tornavam-se especialmente duros quando marcados pelo desprezo. Alto, esbelto, com mãos grandes, cujos dedos longos e finos possuíam talhe aristocrático. Sua atitude adequava-se perfeitamente à atmosfera daquele local, como se houvesse atravessado todos aqueles séculos sempre vivendo ali. Tal pensamento, embora absurdo, dominou o cérebro do professor a ponto de transformar-se em significativa impressão, que beirava a certeza. Preparou-se para deixar a mesa, quando o monge despertou de seu êxtase:

-Deseja algo mais, senhor? - perguntou, cortês.

- Gostaria de encontrar algum lugar onde pudesse dormir um pouco. Sinto-me morto.

- Há um lugar. Siga-me, senhor professor.

O Senhor do Poço levantou-se e apanhou um tosco castiçal de ferro batido, onde luziam três velas de sebo. Seguiu na direção do poço e, na parede ao lado, abriu uma portinhola. Subiu alguns degraus de pedra, pequenos e gastos e, seguido pelo professor, chegou a um patamar arredondado, não muito largo, onde, ao fundo, erguia-se uma escada em caracol que levava ao segundo pavimento. Estavam no interior da torre. O Senhor do Poço abriu uma porta de madeira e, entregando uma das velas ao professor, explicou:

- Este aposento lhe pertence, agora. Possui catre, mesa e cadeira. Também lhe reservei um cobertor de lã, algumas folhas de papel e um pouco de tinta. Vivo em aposento semelhante, porém acima. Se desejar algo, basta subir as escadas. Tenha uma boa noite.

Dito isso, deu-lhe as costas e seguiu pela escada em caracol. Encostado no portal, o professor acompanhou com o olhar a sombra do Senhor do Poço alongar-se pelas paredes de pedra até a escuridão tomar conta de tudo. Exausto, fechou a porta, apagou a vela e deixou-se cair no duro catre, enrolando-se no cobertor e adormecendo instantaneamente.

Uma forte claridade filtrou-se na cela, na manhã seguinte, através da janelinha gradeada. Mais descansado - mas nem por isso menos excitado -, o professor ergueu-se do catre e foi até o galpão. Lá encontrou para si um simples desjejum, composto por alguns frutos e por legumes cozidos, ainda quentes; comeu com avidez. Era ainda bem cedo, e o sol conferia à vegetação matizes indescritíveis, harmonizados com o gorjear dos pássaros. Deliciado com espetáculo tão original a seus olhos citadinos, localizou em meio ao verde a austera silhueta do Senhor do Poço que, de joelhos, olhos fechados e mãos cruzadas sobre o peito, conservava-se imerso em profunda meditação, que o professor não ousou interromper. Caminhou até o poço e estudou-o com redobrada atenção. Nesse ínterim, ocorreu-lhe a lembrança de relato antiquíssimo - uma crônica anônima do século XII, salvo engano - que mencionava, ainda que veladamente, a existência de certo poço por meio do qual a verdade se manifestava. Apesar de, como estudioso, manter sua mente sempre aberta a quaisquer descobertas científicas, místicas ou históricas, tinha até então este relato como meramente lendário, indiscutivelmente oriundo da supersticiosa mente medieval. Ajoelhou-se frente ao poço e, emocionado com a possibilidade de realizar seu maior desejo, orou às Potências em agradecimento. Ao terminar, percebeu que o monge o observava, em respeitoso silêncio, sentado nas ruínas, ao sol. Sentou-se a seu lado.

- Questionava? - perguntou o monge.

-Não, ainda não. Desejo preparar-me, antes. Interrogarei o poço à noite; creio que me será mais propício.

-Compreendo. Aja da forma que lhe parecer melhor, senhor professor. Lembre-se de que caberá sempre ao senhor escolher como, quando, e o que indagar ao poço. Não tenho o direito nem o dever de opinar ou de discutir seus métodos.

- Quer dizer que me é conferida total liberdade?

- Perfeitamente. Limites, se os houver, partirão sempre de sua própria consciência.

O professor não pôde deixar de sorrir. Seu coração palpitava, os olhos brilhavam. “Sem limites!” - pensou - “Sem barreiras! Que tenho a temer de minha consciência? Finalmente, a merecida recompensa por todos os meus esforços! Já não era sem tempo!”. O Senhor do Poço o observava, curioso.

- A idéia do conhecimento o fascina, não? - perguntou.

- E como não? É simplesmente tudo que sempre almejei.

- Sim, mas... Considera-se... pronto? - arriscou o monge.

Um brilho de despeito iluminou o olhar do professor:

-O que lhe parece, senhor monge? - retrucou, ríspido.

- Nada - foi a resposta, seca e fria - Foi somente um comentário, não pretendia ofendê-lo.

- Olhe, se seu objetivo - disse o professor, impaciente - é inteirar-me daquela antiga fórmula de que o “verdadeiro conhecimento é fardo por demais pesado para a frágil alma humana”, aviso-lhe que perde seu tempo, pois não acredito nela. Estou preparado para recebê-lo, indiscutivelmente, e - fixou seu interlocutor - se houver algum preço para a sabedoria, estou disposto a pagá-lo, seja ele qual for.

Disse isso em tom de desafio. O monge encolheu os ombros. Sorriu friamente, levantou-se, pegou seu bordão e respondeu:

- Assim seja, senhor professor. Se precisar de mim, me encontrará na torre. Saudações.

O professor deixou-se ficar ali por alguns instantes, observando o Senhor do Poço afastar-se. “Insolente!” - pensou, irritado. As palavras que ouvira ecoavam insistentemente em seu cérebro, incitando-o a um repentino exame de consciência que, todavia, recusou-se a fazer. Sentindo-se incomodado, caminhou pelos arredores do mosteiro, a esmo, sem fixar o pensamento em coisa alguma. À tarde, cerrou-se em sua cela, em meditação, preparando-se. Não tornou a rever o monge.

Assim que o tímido crescente surgiu, o professor deixou a cela e dirigiu-se ao galpão, emocionado; decidira interrogar o poço paulatinamente, um assunto por vez, para que pudesse absorver e julgar todas as informações. Havia tanto por saber! Deus, Lúcifer, alma, imortalidade, transcendência... onisciência! Estremeceu diante deste último ponto. Sim; por meio da total sabedoria tornar-se-ia superior, pleno; um novo Messias! Claro, eis sua missão! Como não lhe ocorrera tal idéia antes?... Excitado com a súbita revelação, sentou-se à mesa e respirou fundo. Escondeu o rosto entre as mãos, permanecendo assim por algum tempo; buscava controlar o turbilhão que o agitava. Quando se julgou suficientemente lúcido, ergueu-se e dirigiu-se para a borda do poço; então percebeu o monge, de pé na soleira da porta que levava à torre. Tinha o ar sério, a atitude respeitosa, e parecia esperar que o professor o mandasse permanecer ou retirar-se. Apesar de toda a solicitude por ele demonstrada, preferiu o professor que se retirasse - sua presença ali o incomodava. O Senhor do Poço saudou-o com um leve aceno e deixou o galpão, indo sentar-se nas ruínas, ao luar.

A ocasião não poderia ser mais propícia para o questionamento. Uma brisa tépida emprestava ao ambiente uma sensação tranqüila e acolhedora, que parecia refletir-se nas águas claras do poço. O professor ajoelhou-se e perdeu-se, momentaneamente, na contemplação de seu próprio reflexo; logo se deu conta, porém, da infantilidade de seu comportamento e, excitado, agitou, docemente, as águas. A certo ponto, porém, deteve-se, estupefato: qual seria sua primeira pergunta? Sentiu-se a criatura mais estúpida do Universo: o novo Messias não havia, até então, definido seus objetivos! A embriaguez de sua pretensa revelação o absorvera a tal ponto que lhe retirou todo e qualquer senso prático. Teve raiva de si mesmo, de sua pretensão; ergueu-se, retornou à mesa e, após tumultuada reflexão, definiu como iria proceder.

Retornou ao poço e preparou-se para indagar, a princípio, da existência de Deus e para conhecer a verdadeira razão do Universo; deteve-se, contudo, pela segunda vez, retirando bruscamente sua mão trêmula da água. Enquanto a agitava, ocorrera-lhe o alcance e a importância do que questionava. Suportaria, ele, o conhecimento? E se a resposta contrariasse totalmente suas convicções? Pior: e... se não houvesse resposta alguma? Nunca se sentira tão pequeno e inseguro, até então; presenciara diversas manifestações, tanto paranormais quanto sobrenaturais, participara de inúmeras cerimônias de magia e ocultismo, mas nada se assemelhava ao que estava prestes a descobrir. Humilhado, pálido, trêmulo, deixou o galpão e sentou-se ao lado do Senhor do Poço, nas ruínas. O olhar perscrutador que este lhe dirigiu ofendeu-o profundamente; pareceu-lhe que a intenção do Senhor do Poço não era outra senão revelar-lhe desprezo, muito embora sua atitude em nada corroborasse tal opinião.

- Não é este o momento para tratar com o poço - disse o professor, dominando sua cólera -, não com lua crescente. Creio que teremos lua cheia em pouco tempo...

- Daqui a três dias - cortou o monge, calmamente, contemplando o céu.

- Sim... em três dias - repetiu o outro, contrariado coma interrupção - A lua cheia me será mais propícia, trará bons augúrios. Certamente serei bem sucedido sob sua influência... e proteção.

Terminou a frase quase com um murmúrio. Sabia que esta justificativa era absurda, o que o fazia sentir-se ainda mais ridículo aos olhos do Senhor do Poço. Este se ergueu lentamente e disse:

- Será como o senhor desejar, professor. Como já sabe, não é preciso ter pressa. - E ajuntou, em voz baixa, quase num sussurro: - Lembre-se de que é senhor de toda a sua vontade e métodos; aqui estou somente para servi-lo. Não precisa me dar explicações...

Afastou-se lentamente, enquanto o professor rilhava os dentes. “Cretino!” - murmurou. Subiu à torre, trancou-se em sua cela sem nada comer e passou parte da noite em claro, estirado no catre, remoendo sua fraqueza de espírito.

Os três dias de espera da mudança da fase da lua lhe pareceram intermináveis. Tal situação era ainda agravada pela absoluta simetria da rotina do Senhor do Poço: pela manhã, dedicava-se a pequenos trabalhos em sua horta, logo após a uma longa oração; depois, preparava a sempre frugal refeição, raramente enriquecida com algo diferente. À tarde, entregava-se à profunda meditação em uma pequena colina próxima, prática que o levava, certas vezes, ao êxtase total, que o professor nunca ousaria interromper. Ao final, ou recitava uma litania em latim arcaico, ou entoava um cântico, na mesma língua, com voz melodiosa e triste. O canto do monge impressionava vivamente o professor, que julgava estar ouvindo a voz de um ser celestial. À noite, o Senhor do Poço cuidava de pequeno porém mimoso jardim lateral às ruínas, tarefa à qual dispensava imenso carinho. O outro, enquanto o observava furtivamente, nunca pôde compreender porque o Senhor do Poço deixava este cuidado para a noite, mas um inexplicável escrúpulo o impedia de perguntar. Quase não lhe dirigira a palavra, aliás, nestes dias; preferia entregar-se às próprias cogitações, especulando sobre o passado do mosteiro, seus segredos e os do Senhor do Poço, cuja personalidade lhe parecia absolutamente impenetrável. Caminhava muito, e a solidão do lugar o agradava. Pensou com determinação sobre seu retorno ao poço; desistiu da onisciência, decidindo fixar-se na questão de Deus e na razão do Universo. Insistia neste segundo ponto por ser sua mais fascinante dúvida, para a qual convergia a maior parte de seus estudos. Quanto à fraqueza, não cria que se repetisse; ademais, seu notório passado de pesquisador o tornava, obviamente, apto para qualquer resposta, independentemente de sua natureza; apenas a emoção o atrapalhara. Tomou esta consciência à noite, na véspera do dia em que voltaria ao poço, e a ela não mais dirigiu seu pensamento, tão seguro se sentia. Entretanto, ainda preferiu aguardar a lua cheia para o questionamento.

Nesse ínterim, começou a impacientar-se; era-lhe impossível meditar durante todo o dia. Assim, a certa altura, aproximou-se do monge - que cuidava, distraído, da horta - e indagou:

- Onde posso encontrar livros, aqui?

O Senhor do Poço pareceu não compreender a pergunta.

- Livros? - repetiu, surpreso.

- Sim, livros, manuscritos, documentos, qualquer obra humana escrita! - impacientou-se o professor - Existem?

- Somente meu breviário, e algumas impressões pessoais que esporadicamente escrevo; não creio que possam interessá-lo, senhor. O professor suspirou, e pôs-se a revirar a terra fofa com a ponta do pé esquerdo. O Senhor do Poço o observou atentamente, com os braços cruzados sobre o peito.

- Senhor professor, posso lhe fazer uma pergunta?

- Certamente. Fale.

- Por que razão deseja livros e documentos, quando pode obter tudo o que quiser diretamente do poço?

A lógica quase infantil da questão abalou o professor. Reconheceu-se perplexo diante do óbvio, sem saber o que dizer. E não podia nem mesmo revoltar-se com o Senhor do Poço, em virtude da seriedade que demonstrava. Assim, após alguns instantes de confusão, conseguiu criar uma resposta:

- É a força do hábito!... O senhor sabe, sou professor universitário, permaneço sempre em meio a livros e livros... Sim, claro, é o hábito... - acrescentou, com um sorriso fútil.

- Compreendo... - disse o Senhor do Poço, retomando seu trabalho.

- Ademais - prosseguiu o professor, com empáfia -, não me utilizarei nunca do poço, aquela tamanha fonte de conhecimento, para obter informações tão simples como dados históricos! Manias de historiógrafo!... Ora, vejam! Livros!... - resmungou.

Não tendo o monge dado resposta, passou o professor o decorrer do dia caminhando e pensando, sentindo-se deslocado, confuso. Invadido por súbita e intensa sonolência, adormeceu, de bruços, na relva macia, ficando ali até o anoitecer. Retornou lentamente ao galpão e, após comer qualquer legume ou fruto, trancou-se em sua cela.

Despertou bem tarde, no dia seguinte. De sua pequena janela gradeada pôde ver o monge em sua meditação. Depois de caminhar um pouco, sentou-se nas ruínas e ali permaneceu até a noite, observando o verde. Quando a lua cheia finalmente surgiu em todo o seu esplendor, entrou no galpão, onde o Senhor do Poço ocupava-se em acender suas toscas velas de sebo. Ao ver o professor, fez menção de retirar-se, no que foi impedido pelo outro:

- Pode ficar; ou melhor, fique. Não me incomoda. - acrescentou, cordial.

O Senhor do Poço sentou-se à mesa, um pouco afastado. O professor observou o clarão do luar - que por entre as falhas do telhado iluminava o galpão quase como se fosse dia -, e decidiu não mais adiar o momento de contemplar a verdade. Ajoelhou-se à borda do poço e, emocionado, nele mergulhou sua mão trêmula, enquanto mentalizava suas duas questões. A água tomou leve movimento giratório, que crescia constantemente, enquanto uma imagem lentamente se formava. Com o coração aos saltos, assustado com a imprevisibilidade total das respostas que lhe seriam dadas, o professor viu-se tomado por incontrolável sensação de vertigem que o prostrou completamente, fazendo com que caísse por terra. O Senhor do Poço prontamente o socorreu, levando-o para o ar livre e umedecendo-lhe a fronte com um trapo.

- Está se sentindo bem, senhor?

O outro assentiu. Um enorme cansaço entorpecia-lhe os membros banhados de suor.

- A manifestação ocorre sempre desta forma? - perguntou, com voz fraca.

- Sim, sempre que a questão apresentada é relevante. - respondeu o Senhor do Poço - Seu mal-estar, senhor professor, é absolutamente normal; de uma outra vez, não sentirá nada. Não se preocupe. - acrescentou, solícito.

O professor recuperou-se aos poucos; a brisa suave o auxiliou a recobrar ânimo. Assim que se sentiu restabelecido, dirigiu-se novamente ao poço, repetindo seu procedimento anterior. Ainda outra vez a manifestação do poço foi a mesma, a furiosa vertigem, a incerteza... o medo. Sentado no chão, com o rosto escondido nos joelhos, reconheceu que não suportaria aquela experiência uma terceira vez; ignorando a presença e as exortações do Senhor do Poço - que parecia haver perdido parte de sua solicitude -, retirou-se, humilhado, para sua cela escura.

Com o romper da aurora, desceu às ruínas, cruzou o jardim e sentou-se no alto da colina. Dali se descortinava grande parte da floresta; distraiu-se acompanhando o despertar das inúmeras espécies de pássaros, deliciado com o espetáculo de suas delicadas plumagens.

“Qual será a razão deste temor?” - perguntava-se, entristecido. “Por que me recuso a receber o prêmio que sempre almejei? Não é possível que não esteja preparado!... E não se trata apenas da vertigem, claro que não... Por quê?

Refletiu até sentir latejarem-lhe as têmporas; não obteve nenhuma justificativa que o agradasse. Apenas uma determinada idéia insinuou-se em sua mente, mas pareceu-lhe tão absurda e ofensiva que a descartou imediatamente.

No caminho de volta para o galpão, encontrou o Senhor do Poço, que colhia legumes para o almoço. Sentiu uma estranha necessidade de falar-lhe, um inexplicável desejo de justificar-se, mas o olhar frio que lhe dirigiu o Senhor do Poço gelou-lhe as intenções. Perambulou, então, por entre as ruínas, sempre a esmo, descobrindo nisto um estranho prazer. O ócio permitia-lhe sonhar e o sonho o livrava, ainda que por pouco tempo, da angústia que o oprimia.

Assim que caiu a noite, pediu ao monge que lhe trouxesse alguns frutos, que comeu mecanicamente, em silêncio. Apesar da proximidade de seu novo contato com o poço, sua certeza na realização de seus objetivos o deixava mais calmo, não obstante sua natural emoção. Como na noite anterior, pediu ao Senhor do Poço que ficasse - mas, dessa vez, sua presença o incomodava um pouco. Não pode deixar de notar que, agora, o monge preferiu sentar-se bem próximo a ele, e observava tudo com indiscutível atenção.

O professor acercou-se do poço e permaneceu de pé; talvez a distância minorasse os efeitos da manifestação. Agitou as águas e indagou, tão somente, a respeito da razão do Universo; decidira, não sem esforço, concentrar-se apenas neste ponto, definitivamente dado como suficiente por sua consciência. Imediatamente as águas retomaram seu movimento circular lento e contínuo, mergulhando o infeliz professor em estado semelhante ao transe hipnótico. Oscilava, arfava; a vertigem aumentava pouco a pouco. Uma imagem bastante indefinida principiou a se formar, e daí não lhe foi mais possível manter-se de pé. Sem encontrar apoio, caiu de joelhos, segurando a cabeça entre as mãos e olhando fixamente para o chão. Agarrou a borda do poço; ao tentar levantar-se, foi súbita e violentamente seguro por mãos de ferro: uma, lhe torcia o braço para trás das costas; a outra, erguia sua cabeça à força, puxando-a pelos cabelos.

- Olhe! - vociferou o Senhor do Poço, lívido, em seu ouvido - Olhe! Não ousou a pergunta?

- Eu não posso! Largue-me! - exclamou o professor, presa de terrível desespero. O galpão inteiro girava ao seu redor, seus olhos turvos não discerniam mais as imagens. Sentiu imenso pavor, e lutou como pôde para desvencilhar-se do monge, que o prendeu com ainda mais força.

- Deixe-me!!! - urrou - Deixe-me! Não lhe cabe discutir ou interferir em minhas atitudes!

- Atitudes! Se não pode cruzar os umbrais, por que entreabre a porta? Rato! Olha pelo buraco da fechadura o que se passa em seu próprio quarto! Que tipo de sábio é, afinal? Olhe! Suporte a revelação! Olhe!!!

E o Senhor do Poço o forçou a contemplar diretamente as águas, onde algo já se mostrava com certa nitidez. Aterrorizado com o desconhecido, o professor apenas relanceou os olhos, mas não pôde suportar mais; com supremo esforço, empurrou o monge, ergueu-se cambaleante e, com um grito, precipitou-se para fora do galpão.

- Covarde! - atirou-lhe o Senhor do Poço, com desprezo.

Sem ouvir ou perceber nada ao seu redor, o desgraçado correu pela floresta enquanto suportou. Até que, vencido pela fadiga, caiu na relva e chorou convulsivamente. Não conseguia compreender a razão de seu terror, nem de sua fraqueza de espírito. Desesperado, sacudido por sofridos soluços, desfaleceu.

Vítima de estranho torpor, despertava a intervalos irregulares e voltava a desfalecer. Sentia a cabeça pesada, dolorida, os lábios ressecados; seus membros enfraquecidos não o obedeciam, sendo inútil qualquer esforço para erguer-se. Só recobrou o ânimo e a consciência plena de seus atos muito tempo depois. Assim que se sentiu capaz, levantou-se e, sem perceber, retomou lentamente o caminho de volta para o mosteiro.

Quando o avistou, a lembrança do que ali se passara o atingiu em cheio; um grito - Covarde! - o feria. Foi invadido por doloroso sentimento de vergonha, que o impediu de voltar para sua cela. Não suportaria o olhar do Senhor do Poço. Aproximou-se, apenas, sorrateiramente da horta, para roubar alguns legumes; escondeu-se na mata, não muito longe dali, onde passou a viver.

De seu esconderijo, podia avistar o monge em meditação, no alto da colina. Apesar do sentimento de repulsa que tudo por ali passara a lhe inspirar, não conseguia o professor afastar-se, nem desistir de enfrentar o poço. Precisava encontrar um meio de resistir ao terror e suportar a revelação. Ainda que empenhasse o restante de sua existência em tentar, não desistiria; em sua mente, determinou que precisava provar para si e para o Senhor do Poço que não era um covarde, e que sua apreensão significava, em verdade, profundo sentimento de respeito. Contudo, por mais que caminhasse, meditasse, refletisse ou argumentasse consigo mesmo, acabava por permanecer com as mesmas impressões, que o impediam de reaproximar-se do poço. Certo dia, precisou afastar-se ainda mais do mosteiro, pois o Senhor do Poço o flagrara, pela manhã, arrancando tubérculos às escondidas. Nada disse, mas o olhar que dirigiu ao professor demonstrava desprezo tal que perigava transformar-se em ódio.

Depois de rondar o mosteiro por dias e dias, desnorteado, febril e agoniado por suas dúvidas, encontrou, certa manhã, quase que por acaso, tal como uma revelação, a resposta que ardentemente procurava. Assim que a considerou, uma doce sensação de paz tomou seu espírito; estava salvo! Naquela tarde acompanhou, à meia voz e com intenso júbilo, o cântico entoado pelo monge, que àquela altura já sabia de cor. Chovia muito, mas isso não o incomodava mais; acolheu a chuva como uma bênção, e orou em reconhecimento.

Naquela noite retornou ao galpão, livre de qualquer sentimento de humilhação ou repulsa. O Senhor do Poço preparava-se, como de costume, para apagar suas velas de sebo; deteve-se, porém, ao rever o professor. Lançou-lhe, então, todo o seu desprezo em um sorriso desdenhoso, cruel, que lhe torceu os lábios. Observando com mais atenção, porém, a figura do professor, desfez imediatamente o sorriso e assumiu seu antigo modo respeitoso e solícito. Sentou-se na ponta do pesado banco e, interessado, pôs-se a observar.

O professor contemplou, pelo buraco do telhado, o céu profusamente estrelado, sem nuvens nem luar. Depois, sereno, caminhou até o poço e, após observá-lo por alguns instantes, agitou outra vez suas águas mansas, formulando sua antiga e mais profunda dúvida. Assim que a manifestação se iniciou, e enquanto uma resposta lentamente se formava, o professor aproximou-se da beirada do poço, abriu os braços e, sem uma palavra, nele se lançou, em meio ao furioso turbilhão. Em pouco tempo, porém, tudo se acalmou, retomando o poço seu aspecto cristalino e sereno.

Foi nesse instante então que o Senhor do Poço se ergueu, apagou suas velas de sebo e, tomando seu breviário, retirou-se para sua cela, à espera do próximo peregrino.

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Nota: O texto em questão foi escrito pela Regina, que é a autora da Raven nas fics do Expresso Hogwarts. Quem quiser deixar algum comentário, pode fazer vistando o blog pessoal dela, ao clicar AQUI
O Rubi



Era noite alta quando deixei de lado a leitura a que me dedicava. Não tinha sono e profunda melancolia tomava conta de meu espírito carente de emoção. Quis levantar-me da cama para apagar a luz; não encontrei ânimo. Recostei-me, então, nos travesseiros, fechando os olhos. Descansando o corpo, esperei poder também acalmar a alma.

Súbito, abri os olhos. Tinha ouvido o ruído da maçaneta da porta. Julguei ser apenas uma impressão, mas o assombro tomou conta de mim assim que vi a porta de meu quarto - trancada por dentro - abrir-se mansamente. E, assim que a porta se abriu, ele adentrou o cômodo.

Meu assombro foi tamanho que não houve espaço para o medo. Ademais, como eu poderia temê-lo? Não havia meio. Nada existia de ameaçador naquele rosto singular, de traços finos e bem feitos. Aqueles olhos negros, amendoados, embora penetrantes e fixos nos meus, não me traziam outra sensação que não fosse a mais profunda confiança. Eu sabia muito bem quem era ele, de onde e porque viera, mas tinha certeza de que nunca fugiria de sua presença nem o tentaria expulsar.

Aproximou-se de mim, tomou minha mão e tocou-a, levemente, com seus lábios frios. Depois, com voz baixa e aveludada, convidou-me a acompanhá-lo. Não pude resistir. Levantei-me da cama e, sem retirar minha mão da sua, acompanhei-o até a porta de meu quarto; não cheguei, contudo, a transpô-la. Antes disso, ele me deteve e baixou minhas pálpebras num gesto breve, dizendo-me que somente abrisse os olhos quando ordenasse. Fascinada, obedeci.

Durante um breve espaço de tempo ele me guiou. Quando me permitiu abrir os olhos, a paisagem que vi não se assemelhava à de minha casa. Não sabia onde estávamos. Percorríamos, lado a lado, um caminho ao ar livre, banhados pela luz prateada do astro noturno. Senti-me levemente perturbada, um calafrio arrepiou minha pele. Ele percebeu e segurou minha mão com mais firmeza, transmitindo-me confiança. Olhei em seu rosto e ele leu em meus olhos que eu o seguiria a qualquer lugar onde me levasse. Seus lábios esboçaram um sorriso e, sempre de mãos dadas, continuamos a percorrer o misterioso caminho. Uma sensação mista de prazer e terror tomou conta de mim, e não cessei de me perguntar onde iria dar aquele trajeto. Também não cessei de desejar que aquele caminho nunca chegasse ao fim.

Caminhamos por um bom espaço de tempo. Eu tinha em minhas mãos um lírio, presente seu. Branca como o lírio era a veste que eu usava, sem lembrar-me, contudo, de quando a vestira. Tanto o traje como o caminho que seguíamos tinham a mesma origem: criados num abrir e fechar de olhos. Acreditei ser isto um delírio produzido por meu agitado psiquismo.

Trocamos poucas palavras. Entendíamo-nos perfeitamente apenas com nossos olhares. Seu rosto pálido, banhado de luar, tornava-se ainda mais fascinante. Algumas vezes não consegui olhá-lo nos olhos; seu olhar insistente me constrangia, seu sorriso malicioso fazia-me corar. Mas não deixava de olhá-lo de soslaio e muito menos de segui-lo, sempre.

Depois de percorrermos o sinuoso caminho ladeado por muitas árvores, algumas até totalmente sem folhas - servindo de moradia às corujas que nos olhavam com seus imensos e curiosos olhos amarelos -, chegamos aos portões de um castelo, cuja fachada registrava traços de secular desgaste, o que aumentava ainda mais sua beleza. Ali residia aquele a quem eu acompanhava. Sempre de mãos dadas, atravessamos um pequeno jardim sombrio e levemente abandonado, e chegamos até a porta do castelo que nos foi aberta por um mordomo.

Deslumbrei-me com a beleza do aposento onde me encontrava, apesar do frio ali reinante. A iluminação consistia em pálida luz de velas e, como decoração, um divã colocado a um canto; alguns quadros, retratos em sua maioria; um carrilhão de madeira escura, ao lado de uma janela guarnecida por pesadas cortinas e, mais ao fundo, um órgão negro. Ao centro do aposento uma grande mesa e, sobre ela, uma bandeja com uma garrafa de licor e dois cálices. Tudo isso me trazia a sensação de estar participando de um conto de fadas, ainda que um tanto lúgubre.

Sentei-me no divã. Ele serviu o licor e ofereceu-me um dos cálices. Contrariando meus hábitos, aceitei-o; ele, então, propôs um brinde. Ao ser questionado sobre a razão do brinde, respondeu, simplesmente, com voz cheia de significado: “À noite”. Olhando-nos nos olhos, brindamos. Ele sorriu, deslizando carinhosamente sua mão por meus cabelos. Como que hipnotizada, não consegui desviar meus olhos dos seus, seu encanto envolveu-me aos poucos e fez com que eu me esquecesse do mundo exterior e me concentrasse apenas na singular beleza de seu rosto e na delicadeza de suas atitudes. Apesar de conhecer o verdadeiro fim de todas aquelas carícias, não fui capaz de preocupar-me e entreguei-me, gradativamente, àquele sonho agridoce.

Por muito tempo deixamo-nos ficar ali, no divã, ele sempre a acariciar meus cabelos. Até que, sorrindo, levou a mão ao bolso de seu paletó e dali retirou um fino cordão, cujo pingente era um rubi em forma de gota. Pediu-me que erguesse os cabelos e eu o fiz; colocou o cordão em meu pescoço e, antes que eu pudesse esboçar qualquer opinião, abraçou-me e beijou-me ardentemente. Não apresentei resistência; seduzida pela doçura de seus carinhos, estreitei-o em meus braços, desejei-o cada vez mais perto, esperei que aquela noite não chegasse ao fim.

Abraçava-me com força, murmurando palavras desconexas em meu ouvido, palavras que eu não entendia e nem procurava entender. Depois, soltou-me de seus braços e, pousando suas mãos macias e frias em meus ombros, fitou-me longamente. Entendi o porque daquele olhar. Acariciei-lhe o rosto, ele tomou minha mão trêmula e beijou-a. Abraçou-me novamente, mas não me beijou. Fechei meus olhos quando senti o toque suave de seus lábios em meu pescoço e crispei minhas mãos em seus ombros assim que seus caninos perfuraram minha pele. Com um suspiro desfaleci, num doce torpor, em seus braços, permitindo que ele saciasse sua inesgotável sede em minha rubra seiva vital.

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Quanto tempo permaneci com os olhos fechados foi-me impossível determinar. Despertei do torpor que me havia invadido extremamente confusa; estava novamente em meu quarto, sem saber se o que vivera até então fora realidade ou delírio. Levei a mão ao pescoço, porém nada senti. Nenhuma marca existia em minha pele que pudesse provar a veracidade do que ocorrera. Estava quase convencida de que tudo não passara de um sonho quando, ao endireitar minha camisola, percebi que algo frio me tocava a pele. Levando novamente a mão ao pescoço, constatei, com assombro, a presença de um fino cordão, cujo pingente era um rubi em forma de gota. Um leve arrepio perpassou-me o corpo e o olhar que dirigi à porta de meu quarto retratou, sem disfarces, todo o desejo que senti de que voltasse a se abrir ainda uma outra vez.

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Nota: O texto em questão foi escrito pela Regina, que é a autora da Raven nas fics do Expresso Hogwarts. Quem quiser deixar algum comentário, pode fazer vistando o blog pessoal dela, ao clicar AQUI


QUESTÃO DE HONRA



Aquela deveria ser a sétima cigarrilha que Etienne acendia em menos de quinze minutos. Observar os anéis de fumaça era a única ocupação que, no momento, lhe permitia abstrair-se dos ininterruptos e lamentosos comentários de Madame S. Aceitara o lugar em seu camarote por mera conveniência, pois seu amigo, o Marquês de V., também lhe convidara para assistir a Hamlet em sua companhia. Entretanto, Etienne decidira-se por Madame S. porque, de seu camarote, poderia avistar o de determinada dama que desejava ardentemente conquistar. Mas, pareceu-lhe que os deuses não o queriam auxiliar: desta vez a dama em questão limitou-se apenas a olhá-lo com naturalidade e, no entreato, permaneceu em companhia da irmã e de um primo pedante - e absolutamente desinteressante -, cuja discreta corte encarava com maliciosa diversão.

- Exijo-te sinceridade, Etienne! Eu te peço, não mintas para mim, seria o mesmo que me matasses! Dize, dize com toda a tua certeza: estás realmente convencido de que o Conde de M. não possui nenhum interesse por mim?... Não me resta nenhuma esperança? Fala, Etienne, fala!...

Etienne suspirou. Perdera a conta de quantas vezes ouvira esta mesma pergunta. Deu uma última tragada em sua fina cigarrilha e ajeitou o paletó de seu impecável fraque; depois, tomou as mãos da aflita Madame S. entre as suas e, simulando pesar, lamentou profundamente a indiferença do Conde de M. - aquele falso! -, mas afirmou que tudo não passava, em verdade, de um truque para esconder de Madame a profunda paixão que lhe votava. Sem esperar resposta da já sorridente dama, beijou-lhe a mão delicadamente e deixou o camarote, aliviado.

Ainda restavam alguns minutos de intervalo antes do último ato, e Etienne resolveu aproveitá-los passeando pelo teatro, a observar as diversas beldades. Ademais, com tal procedimento, deixaria bem claro para sua cobiçada dama que não estava à sua disposição e que possuía orgulho bastante para resistir-lhe aos inúmeros encantos. Encontrou o seu amigo, o sempre elegante Marquês de V. e, após trocarem cumprimentos, recebeu dele, por entre um malicioso sorriso, a notícia de que poderia acompanhá-lo, na próxima quarta-feira à noite, ao sarau em casa de Srta. R.

- Que dizes? Foste convidado, então?

- Agora e diretamente por ela, meu caro Etienne; e, quando sugeri levar-te comigo, ela quase não pôde disfarçar certa... alegria. É tua chance, amigo: a dama dos teus sonhos está em tuas mãos!

Etienne quis dizer algo, mas foi interrompido pelo som estridente da campainha anunciando o reinicio da peça. Despediu-se do amigo e, após prometer-lhe uma visita, retornou, satisfeito, ao camarote de Madame S. O Marquês tinha razão: uma vez apresentado à Srta. R., seria praticamente impossível para ela resistir ao que Etienne chamava de sua personalidade magnética. Embalado por deliciosas expectativas, caminhava distraído em direção ao camarote quando um incidente o arrancou de seus sonhos: chocara-se, bruscamente, com um indivíduo que caminhava em sentido oposto ao seu. Pela posição do indivíduo, concluía-se que o choque fora inteiramente proposital.

Com um olhar irritado, Etienne mediu o inoportuno. Este, braços cruzados sobre o peito, devolveu-lhe o olhar acintosamente. Era um jovem, talvez com a mesma idade de Etienne; usava um fraque gasto, mas muito limpo, e suas botas denunciavam bastante uso, não obstante seu brilho. Sua figura simples, ainda que digna, destoava enormemente da extrema elegância de Etienne, cujo vestuário e maneiras adequavam-se perfeitamente à última moda entre a aristocracia. Indiferente à cólera nos olhos do desconhecido, Etienne ajeitou seu paletó, ergueu a cabeça e, com desprezo, deu-lhe as costas, entrando em seu camarote.

O último ato já se iniciara, o que não impediu, contudo, alguns comentários adicionais de Madame S. Etienne, absorto, mal compreendia uma ou outra frase; sonhava com sua dama. Além disso, no palco, Hamlet duelava com Laertes, e tal cena era muito interessante para ele. Shakespeare era extremamente útil nos salões; Etienne o sabia, e se orgulhava de citá-lo, sempre que a ocasião permitisse, durante recepções, jantares e saraus, em perfeito inglês elisabetano. O efeito disso era, invariavelmente, lisonjeiro: olhares de admiração e comentários referentes ao elevado espírito do jovem cavalheiro. Quanto ao incidente com o desconhecido, esquecera-o completamente.

Caiu o pano. Etienne via, aborrecido, naufragar sua esperança de cumprimentar, nos corredores, a Srta. R. Madame S., conhecida por seu notório estabanamento, atrapalhou-se totalmente com suas saias e o binóculo, com a bolsinha e o leque, que deixara cair. Cabia a Etienne, como cavalheiro, o indeclinável dever de auxiliá-la, ainda que a contragosto. Assim, depois de alguns minutos de confusão e gritinhos de impaciência da dama, deixou o camarote com Madame S. - sempre comunicativa - pelo braço, e frustrado por não encontrar quem desejava.

- Etienne, meu querido, ceias comigo esta noite?

- Lamento, Madame, mas tenho um compromisso. O Marquês de V. me aguarda.

- Ah, o Marquês! Sempre me roubando tua deliciosa companhia... Odeio-o, sabes? Mas, espero-te, sem falta e sem desculpas, amanhã à noite; há alguém que desejo que conheças e... Oh! Veja! A senhora Condessa e a filha! Preciso falar-lhes; adeus, meu querido. E não ouses faltar amanhã, ou mandarei buscar-te à força!... Adeusinho!

- Lembranças a Monsieur S. ! - sussurrou-lhe Etienne.

Não pôde deixar de rir ao ver a falante dama apressar o passinho na direção da Condessa (que por sua vez já lhe acenava freneticamente com o leque), após lançar a ele um olhar misto de irritação e malícia, que demonstrava perfeitamente o notório desprezo que a dama sentia pelo marido e que nunca se preocupou em ocultar. Etienne ficou observando a alta e esbelta figura de Madame S. afastar-se, quando sentiu que esbarravam nele, pelas costas; preparou-se para humilhar o importuno, mas teve deliciosa surpresa: fora a Srta R. quem lhe esbarrara! Ela desculpou-se, corando, e reiterou-lhe o convite para o sarau; Etienne, agradecido, tomou-lhe a delicada mão e beijou-a, cavalheirescamente. Recebeu em troca um cumprimento e um sorriso tão doces que compensaram totalmente todos e quaisquer dissabores que aquela noite no teatro lhe trouxera. Perdoou até mesmo a tagarelice e a maledicência de Madame S.

Etienne acendeu outra cigarrilha e, sorridente, parabenizava-se por seu sucesso. Terminava de descer a bela escadaria do teatro quando foi surpreendido por feroz ironia:

- Vidinha feliz, meu senhor!...Parabéns!

Olhou na direção de onde provinha a voz e encontrou o mesmo indivíduo com quem se chocara no teatro, o que o irritou realmente. O rapaz fumava um cigarro barato e o olhava, sorrindo; parecia ser estudante.

- Obrigado. - devolveu-lhe Etienne, irritado - Entretanto, lamento que meus sucessos despertem a inveja alheia.

Deixou o teatro e seguiu pela calçada. Malgrado seu, era impossível, naquele momento, encontrar um fiacre vazio; não avistou sequer um conhecido.

- Por que a pressa, senhor? A noite está tão agradável, o senhor está feliz e eu me sinto tão bem! Por que não conversamos um pouco? Tenho um assunto para tratar com o senhor. É importante.

- Não tenho nada para tratar com o senhor, e nem o desejo. Sequer o conheço - retrucou Etienne, incomodado com a presença daquele sujeito desagradável e visivelmente disposto a segui-lo e a estragar sua ventura.

- E quem pode afirmar, de fato, conhecer seu próximo? - perguntou o outro, cínico. Depois disse, mudando de tom: - Pouco me importa se me conhece ou não; quero falar-lhe, senhor, e irá me escutar. Com atenção.

- O senhor está bêbado - disse Etienne, entre dentes - Vá para casa e me deixe em paz!

Nem bem andou três passos e foi seguro pelo braço. Enfureceu-se:

- Largue-me, senhor. Agora!

- Absolutamente. Irá me ouvir.

- Chamarei a polícia!

- Pois que chame; não me importo! Não o deixarei até que me escute, senhor. Nem que tenha de segui-lo por toda a cidade, mas serei ouvido! Deixei passar muito, muito tempo; cansei-me de esperar.

Etienne reparou que começavam a chamar atenção, parados, como estavam, no meio da calçada. Tinha horror ao ridículo e, no caso, a única forma de evitá-lo seria ceder à instância do maldito estudante.

- Seja! - disse - Ali há um café. Poderemos...

- Não, senhor! - cortou o outro - Nada de cafés. Conversemos no parque. Ali teremos privacidade; poderei dizer-lhe tudo e o senhor não precisará temer escândalo algum, já que tal o preocupa tanto...

- Chega de ironias, senhor. Basta! Encerremos logo este desagradável assunto.

Caminharam até o parque. Ao encontrarem local sossegado o bastante, onde não poderiam ser ouvidos, pararam. Etienne acendeu uma cigarrilha e abriu displicentemente sua elegante peliça. Apesar de todo o aborrecimento, o episódio lhe despertou viva curiosidade.

- E então? - perguntou, simulando indiferença.

O indivíduo encarou-o, feroz, e disse:

- Eu o odeio, e desejo bater-me em duelo com o senhor.

Etienne arregalou os olhos, incrédulo. Depois, explodiu em sonora gargalhada.

- O quê?!? - perguntou, meio sem fôlego - Ah! Essa é a declaração mais ridícula que poderia ouvir!

- Já esperava este comportamento de sua parte, senhor, e isso só faz confirmar meu ódio. - disse o outro, com os olhos brilhantes - Insisto, entretanto: quero bater-me com o senhor e lanço-lhe ao rosto meu desafio.

Etienne parou de rir e, tragando a cigarrilha, considerou seu interlocutor com atenção.

- Pois bem - disse -, o senhor me odeia e deseja bater-se. Muito justo, é a regra. Contudo, gostaria de saber o que lhe fiz para merecer tal ódio de sua parte. Não conheço o senhor, nunca o vi e nem nunca me foi apresentado. O mero fato de eu lhe ser antipático não justifica um duelo.

O rapaz deu um passo à frente e, braços cruzados, afirmou, frisando bem as palavras:

- Odeio-o, pois o senhor representa o que há de mais fútil, desprezível e inútil em nossa sociedade. Seu ócio avilta minha dignidade de cidadão, sua existência de dândi é uma ofensa à minha honra. Quero essa ofensa paga com sangue - seu sangue. O senhor pode escolher armas e local; não tenho medo.

Etienne encarava-o, perplexo. É louco, ou está bêbado, pensou.

- Ao contrário do que possa pensar, senhor, estou completamente sóbrio e longe de ser louco. Este duelo é inevitável, imprescindível, é questão de honra para mim... e o senhor não pode esquivar-se: fiz-lhe um convite formal. - disse o estudante, muito sério.

Aquela estúpida insistência conseguiu irritar Etienne:

-Escute bem, senhor. Pense o que desejar de mim, não me importo. Todavia, sou um homem ocupado, não tenho tempo para bravatas de estudante. Se me inveja, pior para o senhor; tranque-se em seu quarto e bata a cabeça às paredes. Ou melhor: cuide mais de sua aparência, trabalhe seu prestígio e tente alcançar-me.

- Então o senhor se recusa a bater-se comigo? - perguntou o outro, lívido.

- Seria um imbecil se aceitasse.

- É sua última palavra, senhor?

- O que lhe parece?

- Irá arrepender-se amargamente.

- Mesmo? Não o creio! Boa noite, senhor.

Etienne virou-lhe as costas e afastou-se. De repente, o estudante saltou à sua frente e bradou, ameaçador:

- Covarde! Não preza sua honra?

- Muito! - retrucou Etienne, calmo, acendendo outra cigarrilha - Por isso, não a desperdiço com qualquer um. Ouça com atenção, senhor: seu ódio por mim, ou seja lá o que for, não tem, a meus olhos, qualquer significado. Já lhe disse que pouco me importa o que pensa a meu respeito. Vá para casa e esqueça este duelo estúpido.

O estudante mediu-o com desprezo e disse, com voz firme:

- Não pense que se verá livre de mim tão facilmente; bater-me-ei com o senhor de qualquer maneira, eu juro... Eu juro!

Afastou-se, com passos duros. Antes, porém, voltou-se e, apontando para Etienne, rosnou, ameaçador:

- Aguarde-me, senhor! Não tardará a ter notícias minhas.

E sumiu-se no parque.

Parado na calçada, Etienne observou o outro se perder nas sombras. Por mais que se esforçasse, não conseguia compreender a razão de tudo aquilo, nem mesmo a causa do ódio mortal que o outro lhe votava. Qual o problema em Etienne gastar dinheiro demais? Ou em ter roupas elegantes, muitas mulheres? Cansou-se, porém, de especular inutilmente; tomou uma carruagem e dirigiu-se para casa. O criado serviu-lhe o chá e, após fumar uma cigarrilha, o jovem cavalheiro recolheu-se.

Dois dias se passaram, e Etienne não mais ouviu falar do importuno estudante; nem mesmo o reviu. Tal circunstância reforçou sua idéia de que se tratava, em verdade, de um louco que cismara com ele durante um acesso de delírio. Retomou, então, suas ocupações habituais: freqüentava o clube, jogava críquete e visitava as damas e os cavalheiros de suas relações - sempre brilhante e encantador em sua volubilidade e traquejo social -, enquanto aguardava o dia em que, acompanhado do Marquês de V., seria recebido em casa de sua desejada dama.

Um dia antes, contudo, soube que ela iria à ópera naquela noite. Etienne não apreciava óperas - o pipilar da soprano o atormentava cruelmente -, mas não desejou perder a oportunidade de rever a bela senhorita e de fazer-se ver por ela. Ao final do espetáculo, pôs-se a passear, despreocupadamente, na larga calçada fronteira ao teatro, acompanhado do inseparável Marquês. Observavam, por entre comentários, os elegantes pares que, ao final da apresentação, deixavam o teatro em busca de novos prazeres.

- Ah! Não acredito! Etienne, meu querido, vieste à ópera? Que maravilha! Mas, onde te meteste, que não te pude encontrar? Senhor Marquês, eu lhe peço, não me prive tanto da companhia deste belo malvado!... Sofro de um tédio interminável sem ele! Etienne, meu caro, perdeste o espetáculo! Sem dúvida! Nem imaginas quem eu vi, pelo binóculo, no camarote da Srta. T... um escândalo! Um es-cân-da-lo!

E por intermináveis instantes teve Etienne de ouvir, a mando da etiqueta, a detalhada e maledicente narrativa de Madame S., que deixara o teatro ao braço de certo jovem Lord recentemente apresentado à sociedade. Ela discorria, em longas frases sem pausas, acerca de toilletes, olhares, acenos e intenções; nada lhe escapava. Quando se julgava irremediavelmente perdido, Etienne foi salvo por um seu primo que, recém-chegado de sua propriedade campestre, atropelou o discurso de Madame S. com homéricas descrições de caçadas. Em verdade, até que eram providenciais aqueles encontros em frente ao teatro, uma vez que justificavam a permanência de Etienne ali e disfarçavam seu real interesse, muito embora em nada contribuíssem para seu enriquecimento pessoal.

Não tardou, assim, a aborrecer-se; soube, porém, por intermédio de Madame S., que o objeto de suas atenções não viera ao teatro, vítima de ligeira indisposição. Tal notícia terminou de impacientar Etienne, que desejou afastar-se dali - secundado pelo Marquês, que começara a entediar-se -, no que era impedido tão somente pelas regras de etiqueta. Encontrava-se no auge de sua impaciência quando foi tocado, com firmeza, no ombro esquerdo. Ao virar-se, teve infeliz surpresa: era o estudante.

- Por todos os deuses! - exclamou - Que deseja o senhor, desta vez?

O rapaz considerou Etienne com bastante atenção. Depois, com um gesto brusco e inesperado, arremessou-lhe à face seu par de luvas brancas.

Etienne, a princípio, perdeu a noção de tudo; os demais, surpreendidos por atitude tão inusitada, também se mantiveram inertes. Enquanto o agredido tocava sua face ardente e sentia crescer dentro de si a cólera, o agressor, sereno e confiante, disse, em voz alta, para ser ouvido por todos os presentes:

- Sugiro-lhe, senhor, que encontre para si um padrinho; já tenho o meu. Armas, podem ser as suas, e aquelas que preferir. Aguardo sua sugestão acerca de data e local para nosso acerto de contas; aqueles que apontar serão os que aceitarei.

Profundo silêncio reinava ali. O acontecimento despertara a atenção de vários transeuntes, agora testemunhas várias e indiscutíveis da afronta. Em vista disso, era impossível a Etienne recusar-se ao duelo, pois sua dignidade de cavalheiro fora ferida perante todos e, se recuasse, seria reputado como covarde e ser-lhe-ia negada a entrada em qualquer clube ou reunião social. Trêmulo de cólera, encarou o indivíduo que sorria, triunfante: conseguira o que desejava.

- Se é esta a sua vontade, senhor - respondeu Etienne, contendo-se -, não recusarei. Apenas advirto-lhe de que comete um grave e irreparável erro: sou exímio atirador e nunca erro o alvo.

- Estarei pronto.

- Recuso, ainda, de antemão, qualquer tentativa ou mera possibilidade de reconciliação.

- Nem eu, tampouco, a desejo, senhor.

- Muito bem. Esteja com seu padrinho, ao raiar do dia, neste parque, precisamente às cinco horas da manhã. Nos bateremos na pequena clareira, próxima ao lago. Quanto às armas, usaremos pistolas. Que lhe parece, senhor?

- A meu ver, perfeito. Até amanhã, às cinco, senhor.

E o estudante, inclinando-se, retirou-se dali altivamente. Sem maiores explicações, e surdo aos apelos de Madame S., Etienne deixou rapidamente o local, arrastando consigo o estupidificado Marquês de V. Entraram em um restaurante; Etienne pediu uma cabine reservada e uma garrafa de Merlot, da qual serviu-se de uma taça, que tomou de um só gole. Afundou o rosto entre as mãos bem cuidadas; continha-se a custo. O Marquês permaneceu silente, esperando que o amigo se acalmasse e pudesse lhe explicar a razão de tão absurdo acontecimento. Etienne suspirou e tomou outra taça do Merlot.

- Ah, que absurdo! - exclamou - Como pude meter-me em tão estúpida situação?... Logo eu, cavalheiro de prestígio e respeito! - e acrescentou, após alguns segundos: Meu caro Marquês, é teu dever de amigo acompanhar-me ao parque, amanhã. Não aceitarei recusa alguma.

- Nem pretendo esquivar-me, meu caro amigo; sou desde já teu padrinho. Apenas não posso compreender como tudo isso pôde acontecer-te! Quem é este indivíduo que te desafiou? Que fizeste, afinal?

- Serve-te do vinho, meu caro, e te explicarei - se é que existe explicação!

Tomou outra taça e narrou minuciosamente ao Marquês de V. seu primeiro incidente com o estudante, no teatro.

- Mas, Etienne, meu caro, qual a razão para todo este ódio? Pelo menos conheces teu oponente, ainda que de vista? Lembra-te dele?

- Nunca o vi mais gordo! Não o conheço, absolutamente!... Ei, não, não, espere: eu já o vi! Claro, agora me recordo! - exclamou Etienne, socando a mesa, servindo-se de mais vinho e enchendo a taça do Marquês - É verdade; cruzei com ele, certa feita, no parque, enquanto passeava com Juliette (lembra-te dela, meu caro?); ela, tolinha, pôs-se a rir de seu aspecto selvagem e deselegante, e o imbecil aqui a secundou nessa tolice! Também me lembro de ter ignorado sua presença em um sarau excêntrico em casa do Barão de G. - tu te lembras, amigo, daqueles saraus beneficentes para poetas pobres? E tem mais: somente agora me vem à lembrança o fato de que lancei um olhar debochado sobre suas roupas ao passar por ele, naquele dia, na entrada do teatro... Oh, Senhor, antes nunca lhe tivesse posto os olhos! Tolo, idiota, infantil que sou!

E virou outra taça de Merlot.

- Bem, meu caro Etienne - disse o Marquês -, agora é um tanto tarde para te arrependeres. O desafio está aceito, só te resta levá-lo a cabo. Creio que também agirias corretamente deixando este vinho de lado; caminhemos até tua casa, pois o ar da noite te fará bem. Precisamos, ademais, verificar o estado das armas... Vem.

Etienne, irritado, deixou-se levar, a contragosto, pelo braço do Marquês. Em casa, dispensou o criado e apanhou, na secretária, o rico estojo de ébano onde guardava seu par de pistolas de cabo de prata. Observava cada uma com atenção, quando o Marquês argumentou:

- Tens certeza, amigo, de que recusas qualquer proposta de reconciliação? Isto é radical demais de tua parte.

- Não só eu recuso, como também aquele desgraçado. Não, nada de radicalidade! Meu caro Marquês, fica certo disto: ele tem uma questão de honra, eu outra; o infeliz me odeia por eu lhe ser superior, e eu o odeio por ter-me rebaixado à sua condição, humilhando-me como a um lacaio perante meus amigos e pessoas de bem. Não há perdão.

Muito embora tivesse opinião diversa, o Marquês se calou. Somente aceitou o triste encargo de padrinho devido à sua antiga amizade com Etienne e pelo fato de a ofensa ter sido pública. Pois, se assim não fosse, tentaria impedir de todas as formas aquele duelo, a seu ver tão frívolo. Após conferir a excelente condição das armas, reconheceu que o amigo precisava estar só; despediu-se dele e retirou-se. Etienne, por sua vez, ainda tomou um cálice de xerez antes de recolher-se. Apesar da irritação que o incomodava, deitou-se e dormiu sono bastante inquieto, permeado de sonhos confusos.

Quando, na manhã seguinte, Etienne e o Marquês de V. chegaram ao lago pontualmente às cinco, o estudante já se encontrava ali, fumando, em companhia de seu padrinho. Este, pouco mais jovem que o estudante, possuía expressão melancólica e sonhadora; parecia encontrar-se muito longe dali, olhando fixamente para seu chapéu, com o qual brincava, absorto, torcendo-lhe a aba.

Os oponentes e seus padrinhos reuniram-se e apresentaram-se. Uma infrutífera tentativa de reconciliação foi proposta, e pareceu ao Marquês que isso trouxe profunda tristeza ao padrinho do estudante, a julgar por sua expressão. Perto dali, o médico que Etienne trouxera consigo verificava sua maleta com apetrechos para primeiros socorros. O vento frio fustigava os presentes, tornando o ambiente solenemente triste.

- Pois bem, senhores; uma vez que o duelo é inevitável, resta-nos estabelecer as condições - disse o Marquês, assumindo o controle da situação, uma vez que o padrinho do estudante mantinha-se mudo - Segundo o costume, os adversários trocarão três balas. A primeira, à distância de vinte metros; a segunda, a dez e, a terceira, a cinco. Os senhores estão de acordo?

Os adversários anuíram e se afastaram. Etienne mantinha-se calmo, certo da vitória, muito embora isso o constrangesse um pouco. Já o estudante conservava seu ar altivo, mas abandonara o olhar desdenhoso e demonstrava respeito em todas as suas atitudes. Seu jovem padrinho, trêmulo, entregou-lhe uma das pistolas e Etienne tomou também a sua. Mediram os vinte passos. O Marquês juntou-se ao médico e trouxe consigo o padrinho do rapaz. Anunciou:

- Monsieur de Voulanger, cabe-lhe dar o primeiro disparo. Contarei até três.

Após a contagem, Etienne visou o adversário e atirou. No mesmo instante, o padrinho do rapaz, assustado, não pôde reprimir um grito, que retirou a concentração de Etienne e o fez errar o alvo. Numa demonstração de cortesia, o estudante atirou para o alto, o que surpreendeu seu opositor. Nesse ínterim, o médico amparou o rapazinho, que lhe segredou, em lágrimas, ser aquele o primeiro duelo a que assistia e que temia perder nele seu único irmão.

Entretanto, o duelo precisava seguir, e os adversários mediram dez passos. Etienne visou o estudante no peito e atirou. Ouviu-se um grito de dor e um baque surdo. O médico correu até o estudante, examinou-o e declarou, compungido:

- Estará morto em poucos minutos. A bala alojou-se direto no coração.

Ao ouvir a notícia, o irmão do estudante pôs-se a chorar. Ajoelhou-se a seu lado e, desesperado, tomou-lhe a mão, que apertou fortemente. Ambos trocaram algumas palavras; o Marquês, emocionado, passou o braço pelos ombros do rapaz e, com certa dificuldade, afastou-o dali.

Etienne, porém, não conseguia deixar o local. Contemplava sua vítima. O rapaz, estendido no chão, banhado em sangue, não gemia, não reclamava; olhava-o, apenas, com insistência. De repente, ergueu lentamente a mão e fez um sinal a Etienne, que se aproximou, ajoelhando-se a seu lado.

- Sim? - perguntou.

- Eu gostaria... de lhe agradecer, senhor...

- Agradecer? A mim? Não o compreendo! O que fiz, para merecer gratidão? Matei-o! Poderia ter evitado tudo isso; o senhor é jovem, teria um futuro...

- Não... não - cortou o outro, com dificuldade, tentando esboçar um sorriso - Era preciso, está tudo certo. Mas, eu quero...

Não conseguiu continuar. Um espasmo de dor calou-o subitamente. Etienne curvou-se sobre ele e perguntou, comovido:

- Sim? Diga-me o que quer, senhor; estou pronto para ouvi-lo. Fale!

- Eu quero... agradecer-lhe! Muito!...

- Por quê? Por que, meu Deus?

- Pela oportunidade... em minha vida... de ter uma... questão... de honra...

E expirou, serenamente, nos braços de Etienne.

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Nota: O texto em questão foi escrito pela Regina, que é a autora da Raven nas fics do Expresso Hogwarts.Quem quiser deixar algum comentário, pode fazer vistando o blog pessoal dela, ao clicar AQUI
SABÁ EM DIAS DE SEMANA



Sou Circe , Megara , Morgana Profana
Sou bruxa , sou fada , sou anjo caído
Sou louca , lunar , Luana , lunática
Sou fogo no ar , sou gelo na brasa
Sou Lilith expulsa , buscando abrigo
Sugando as almas , roubando olhares
Usando meus dons em todos os dias
Sou chama de vela , fumaça de caldeirão
Sou reflexo partido da doce Titânia,
Sou louca , lunar , Luana , lunática
Sou feiticeira de tempos antigos
Sou portadora de segredos perdidos
Serei eu tão poderosa ,
Capaz de domar os ventos do Tempo ou do Destino ?

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Nota: O texto em questão foi escrito pela Ana, que é a autora da Meri nas fics do Expresso Hogwarts, e dos arcos Prelúdio de Sonhos Partidos (com a Lu/Dhara) e Para Sempre na Memória.

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